30.12.07

O relativismo e a modernidade

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Ilustrada, da Folha de São Paulo, sábado, 29/12/2007:


O relativismo e a modernidade


A proposição de que toda verdade é relativa, tão ouvida hoje em dia, é insustentável


As ideologias "pós-modernas" abraçaram o relativismo com a mesma inconseqüência com que atacavam a modernidade. Parece-me claro que muitas das teses de pensadores extremamente influentes, como Michel Foucault, Gilles Deleuze, Jacques Derrida, Richard Rorty e seus discípulos, podem ser consideradas relativistas, mesmo se eles próprios, como é natural, jamais tenham querido assim se rotular.

É mais comum um filósofo relativizar, de algum modo, a verdade, do que confessar-se relativista. Nietzsche, um dos pensadores mais citados hoje em dia, é claramente relativista, embora seja mais freqüentemente classificado de "perspectivista".

O fato é que é comum ouvir-se hoje em dia que "toda verdade é relativa". Essa proposição, porém, é insustentável. Por quê? Porque incorre no que os lógicos chamam de autocontradição performativa. Essa se manifesta no seguinte dilema: se a própria proposição "toda verdade é relativa" for relativa, segue-se que nem toda verdade é relativa; por outro lado, se a proposição "toda verdade é relativa" não for relativa, segue-se, igualmente, que nem toda verdade é relativa. Desse modo, o relativismo universal se desmente ao ser afirmado.

Mas o relativismo é inviável também do ponto de vista prático ou político. Embora ele seja muitas vezes defendido a partir de uma atitude pluralista, em que o relativista, negando-se a tomar qualquer verdade como absoluta, aceita que haja verdades diferentes daquelas em que acredita, ele, com isso, acaba por minar a sua própria posição.

É que, como diz Platão sobre o relativista Protágoras: "ele é vulnerável no sentido de que às opiniões dos outros dá valor, enquanto que esses não reconhecem nenhuma verdade às palavras dele". Assim, enquanto o relativista aceita, por princípio, que sejam relativamente verdadeiras as crenças do anti-relativista ou absolutista (seja ele, por exemplo, um terrorista jihadista), esse não reconhece absolutamente nenhuma verdade nas teses -que, para ele, não passam de manifestações de fraqueza, decadência etc- do relativista.

Pior ainda: o relativismo é capaz de se transformar no seu oposto. "Da equivalência de todas as ideologias, todas igualmente ficções", afirmava Mussolini, sob a influência de Nietzsche, "o relativismo moderno deduz que cada qual tem o direito de criar-se a sua própria e impô-la com toda a energia de que é capaz".

E qual foi a ideologia que Mussolini criou e impôs com toda a energia de que foi capaz? O fascismo, para o qual, como afirmou em "A Doutrina do Fascismo", "o Estado é um absoluto". Eis como é simples a transformação do relativismo em absolutismo.

A modernidade filosófica mesma não é nem jamais foi relativista, pelo menos nesse sentido vulgar. É verdade que, desde o princípio, Descartes e, mesmo antes dele, Montaigne, por exemplo, puseram em questão todos os pretensos conhecimentos dados ou positivos -o que, de certo modo, equivale a relativizá-los. Entretanto, os pretensos conhecimentos positivos são relativizados por esses pensadores a partir da crítica efetuada pela razão: a partir, portanto, da razão crítica.

Assim, ao mesmo tempo em que, por um lado, todos os pretensos conhecimentos positivos são reconhecidos como relativos, por outro lado, a razão (enquanto faculdade de criticar) é reconhecida, desde o princípio da modernidade, como um absoluto epistemológico. Não que ela não possa criticar a si própria: ao contrário, nunca é demais lembrar que, na "Crítica da Razão Pura", de Kant, a razão é tanto sujeito quanto objeto da crítica. Entretanto, justamente ao criticar e questionar a si própria, a razão não pode deixar de se afirmar.

De todo modo, o reconhecimento de que a razão crítica - ou negativa - é epistemologicamente absoluta equivale ao reconhecimento de que nenhum pretenso conhecimento positivo é absoluto: ou, em outras palavras, de que todo pretenso conhecimento positivo é relativo.

Por sua vez, o reconhecimento da relatividade – logo, da falibilidade – de todo pretenso conhecimento positivo é o que torna possível conceber a constituição das condições da produção do conhecimento científico empírico – entre as quais a sociedade aberta – e a concomitante rejeição de toda pretensão de pretenso conhecimento que se furte ao exame aberto e livre das suas pretensões cognitivas.

28.12.07

Elizabeth Bishop: To the admirable Miss Moore

Meu amigo Emiliano Battista me enviou um poema que Elizabeth Bishop fez para Marianne Moore, e eu o traduzi. Eis o poema e, em seguida, a tradução:


To the Admirable Miss Moore

To the Admirable Miss Moore
Of whom we're absolutely sure,

Knowing that through the longest night
Her syllables will come out right,
Her similes will all flash bright

What can we give, yet not be rude,
To show the proper gratitude?

***********************************

Para a admirável Miss Moore

Para a admirável Miss Moore,
Que é o que há de melhor,

E fará, na noite mais longa,
Com as sílabas mais redondas,
As figuras que mais deslumbram,

Que dar, sem ser indelicada,
À guisa de “muito obrigada”?

25.12.07

Federico García Lorca: "Malageña" / "Malaguenha: trad. de William Agel de Melo



Malaguenha

A morte
entra e sai
da taberna.
Passam cavalos negros
e gente sinistra
pelos fundos caminhos
da guitarra.
E há um cheiro de sal
e de sangue de fêmea
nos nardos febris
da beira-mar.
A morte
entra e sai,
e sai e entra
a morte
da taberna.


Tradução por William Agel de Melo


Malagueña

La muerte
entra y sale
de la taberna.
Pasan caballos negros
y gente siniestra
por los hondos caminos
de la guitarra.
Y hay un olor a sal
y a sangre de hembra,
en los nardos febriles
de la marina.
La muerte
entra y sale
y sale y entra
la muerte
de la taberna.



De: LORCA, Federico García. “Poema del Cante Jondo”. In: Obra poética completa. Edição bilingue. Trad. portuguesa por W. Agel de Melo. Brasília: Ed. Universidade de Brasília. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p.220.

23.12.07

Lucas Nicolato: A arte do poeta

A arte do poeta

escrever um poema é ser assaltado
e manter o sangue frio

ou fazê-lo ferver, borbulhar e correr
nas frias treliças metálicas
do concreto armado

escrever um poema é costurar
gotas
de suor ou lágrimas
tecer longa colcha de ondas
sobre sonhos profundos

ou subir na espiral dos sons
de uma escada cujos degraus
são as notas de uma canção oca
e ascender
através das nuvens evaporadas
rumo ao sol
ao céu
ao nada



Lucas Nicolato

21.12.07

Salvatore Quasimodo: "Antico inverno" / "Antigo inverno": trad. de Geraldo Holanda Cavalcanti

Antico inverno

Desiderio delle tue mani chiare
nella penombra della fiamma:
sapevano di rovere e di rose;
di morte. Antico inverno.

Cercavano il miglio gli uccelli
ed erano subito di neve;
così le parole.
Un po’ di sole, una raggera d’angelo,
e poi la nebbia; e gli alberi,
e noi fatti d’aria al mattino.


Antigo inverno

Desejo de tuas mãos claras
na penumbra da chama;
sabiam a roble, a rosas;
a morte. Antigo inverno.

Buscavam milho os pássaros
e eram súbito de neve;
assim as palavras.
Um pouco de sol, um halo de anjo,
e logo a névoa; e as árvores,
e nós feitos de ar na manhã.


De: QUASIMODO, Salvatore. Poesias. Edição bilingüe. Prefácio de Luciana S. Picchio. Trad. de CAVALCANTI, Geraldo Holanda. Rio de Janeiro: Record, 1999, p.36-37.

19.12.07

Günther Anders: Lembrança de Heidegger. Março de 1984

Pessoalmente mal conheci Heidegger. Uma vez em Marburg – esquece-me como isso ocorreu – pernoitei na casa do casal Heidegger. A conversa correu bastante bem, após um jantar em que comemos massa. Então citei, sem inicialmente nomear o autor, o magnífico dito de Voltaire: “Não basta gritar: é importante, também, não ter razão”. Embora totalmente destituído de senso de humor, ele se divertiu. Quando, porém, expliquei que o dito era de Voltaire, primeiro ela – após o quê, também ele – ficou de cara amarrada. Mas a noite só se estragou completamente quando eu continuei, no tom mais inocente do mundo, dizendo que, naturalmente, era válido também o dito simétrico: “Não basta murmurar: é importante, também, ter razão”. Enquanto ela, naturalmente, não entendeu nada, ele por um momento me lançou um olhar cheio de ódio. Sentiu-se posto a nu. Pois era sua tática diária forçar, através de um murmúrio quase inaudível, um silêncio total na sala, para convencer os ouvintes de que tudo o que eles tinham conseguido ao menos acusticamente capturar tinha sido “desvelado”, logo, verdadeiro; não: tinha sido a verdade.


De: ANDERS, Günther. Über Heidegger. München: Beck, 2001, p.11.

18.12.07

Mário de Andrade: Soneto

SONETO

Aceitarás o amor como eu o encaro ?…
…Azul bem leve, um nimbo, suavemente
Guarda-te a imagem, como um anteparo
Contra estes móveis de banal presente.

Tudo o que há de melhor e de mais raro
Vive em teu corpo nu de adolescente,
A perna assim jogada e o braço, o claro
Olhar preso no meu, perdidamente.

Não exijas mais nada. Não desejo
Também mais nada, só te olhar, enquanto
A realidade é simples, e isto apenas.

Que grandeza… a evasão total do pejo
Que nasce das imperfeições. O encanto
Que nasce das adorações serenas.


De: ANDRADE, Mário de. Poesias completas. Ed. crítica de D.Z. Manfio. São Paulo: Ed. Itatiaia e Ed. da USP, 1987, p.320.

16.12.07

Os limites da diversidade cultural

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Ilustrada da Folha de São Paulo, sábado, 15 de dezembro:


Os limites da diversidade cultural

A DECLARAÇÃO Universal sobre a Diversidade Cultural da UNESCO define a cultura como "o conjunto dos traços distintivos espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo social e que abrange, além das artes e das letras, os modos de vida, as maneiras de conviver, os sistemas de valores, as tradições e as crenças".

Quanto a artes e letras, é claro que tudo o que a humanidade já fez constitui um patrimônio a ser preservado e disponibilizado à fruição da presente e das futuras gerações.

Quanto a modos de vida, maneiras de conviver, sistemas de valores, crenças e tradições, porém, a situação é outra. Alguns são admiráveis e devem ser preservados; outros são abomináveis -etnocêntricos, racistas, sexistas, intolerantes- e devem ser combatidos.

Apropriadamente, o artigo 4 da Declaração Universal sobre Diversidade Cultural, intitulado "Os Direitos Humanos, Garantias da Diversidade Cultural" afirma, com razão, que "a defesa da diversidade cultural [...] implica o compromisso de respeitar os direitos humanos e as liberdades fundamentais, em particular os direitos das pessoas que pertencem a minorias e os dos povos autóctones. Ninguém pode invocar a diversidade cultural para violar os direitos humanos garantidos pelo direito internacional, nem para limitar seu alcance".

Infelizmente, porém, desde antropólogos até obscurantistas religiosos têm, em nossos dias, invocado a ideologia do relativismo cultural para justificar todo tipo de violação dos direitos humanos. Segundo eles, tais direitos pertencem à cultura ocidental, onde surgiram, de modo que tentar exportá-los para culturas que não os reconhecem violaria o direito destas à diversidade.

Assim, foi com base no relativismo cultural que neste ano, na Alemanha, uma juíza -citando o Alcorão, que reserva ao homem a prerrogativa de castigar a esposa em certos casos- recusou-se a conceder o direito à antecipação do divórcio a uma mulher que era regularmente surrada pelo marido muçulmano. Ou seja, em nome do direito à diversidade cultural, desrespeitaram-se os direitos humanos dessa mulher.

Ora, os direitos humanos não são um produto da cultura ocidental. Na Europa, o reconhecimento deles foi uma vitória da razão -que só o mais tacanho etnocentrista classificaria de "ocidental"- exatamente sobre as tradições culturais bárbaras do Ocidente medieval.

De todo modo, a menos que seja tomada como uma aplicação particular dos direitos humanos, a Declaração Universal sobre Diversidade Cultural não pode ser levada a sério. Por quê? Porque cada unidade cultural ampla contém ou é capaz de conter minorias, isto é, unidades culturais menores. A proteção da diversidade cultural falhará, a menos que proteja também o direito à diversidade de cada uma dessas unidades menores.

Pois bem, a menor unidade concebível é o indivíduo. Por exemplo, um único judeu -ou ateu, ou budista- que viva entre evangélicos constitui uma unidade cultural minoritária. Embora, portanto, a declaração em questão tenha em vista proteger a diversidade cultural de unidades culturais maiores do que a de um indivíduo, essa proteção será em última análise deficiente, a menos que se estenda ao indivíduo; e este é o sujeito dos direitos humanos. Portanto, para ser consistente, o direito à diversidade cultural tem que ser pensado como um direito humano: o direito de cada indivíduo humano à diversidade.

Esse direito me traz de volta à definição de cultura da UNESCO. Eu disse que tudo o que já se fez em matéria de artes e letras constitui um patrimônio a ser preservado e disponibilizado à apreciação da presente e das futuras gerações. No entanto, é preciso não esquecer que tudo o que já se fez, conquanto importante, é apenas um conjunto de possibilidades que se realizaram. Há, porém, infinitas outras possibilidades a se realizarem, algumas das quais só se manifestam historicamente, a partir do desenvolvimento tecnológico. O direito à diversidade cultural tem que ser, portanto, o direito à experimentação e ousadia em arte, filosofia, ciência, tecnologia etc.

E aqui penso que é preciso ir além e afirmar que o direito à diversidade cultural, estendido até o indivíduo e tendo como fundamento último e intransponível os direitos humanos, deve garantir a liberdade de experimentação também no que diz respeito a novos -para usar as palavras da mesma definição- modos de vida, maneiras de conviver, sistemas de valores e maneiras de lidar com as tradições e as crenças.

Antonio Cicero

13.12.07

Sartre sobre a poesia

No texto seguinte, Sartre fala dos seguintes versos de Rimbaud:


O saisons, O châteaux!
Quelle âme est sans défaut ?

[Oh estações, oh castelos !
Que alma é sem defeito?]


Ninguém é interrogado; ninguém interroga: o poeta está ausente. E a interrogação não comporta resposta ou antes ela é sua própria resposta. Será uma falsa interrogação? Mas seria absurdo crer que Rimbaud tenha querido dizer “todo o mundo tem defeitos”. Como dizia Breton de Saint-Pol-Roux, “se tivesse querido dizê-lo, tê-lo-ia feito”. E tampouco quis dizer outra coisa. Fez uma interrogação absoluta; conferiu à palavra alma uma existência interrogativa. Eis a interrogação transformada em coisa, como a angústia do Tintoreto tornara-se céu amarelo. Não é mais uma significação, é uma substância; é vista de fora e Rimbaud nos convida a vê-la de dentro com ele, sua estranheza vem de que nos colocamos, para considerá-la, do outro lado da condição humana; do lado de Deus.


De: Qu'est-ce que la littérature? Paris: Gallimard, 1948, p.24.

8.12.07

Joan Brossa: El temps / El tiempo

Publico o seguinte poema do Joan Brossa no original catalão e, logo em seguida, em tradução castelhana.


EL TEMPS

Aquest vers és el present.
El vers que heu llegit ja és el passat
—ja ha quedat enrera després de la lectura—.
La resta del poema és el futur,
que existeix fora de la vostra
percepció.

Els mots
són aquí, tant si els llegiu
com no. I cap poder terrestre
no ho pot modificar.




EL TIEMPO

Este verso es el presente.
El verso que habéis leído ya es el pasado,
ya ha quedado atrás después de la lectura.
El resto del poema es el futuro,
que existe fuera de vuestra
percepción.

Las palabras
están aquí, tanto si las leéis
como si no. Y ningún poder terrestre
puede modificarlo.



De: BROSSA, Joan. Poemes de Joan Brossa (antologia). Trad. de A.S. Robayna y M. Mur. Madrid: Ediciones Libertarias, 1983, p.34a-34b.

6.12.07

Jorge Luis Borges: El suicida

Jorge Luis Borges

El suicida

No quedará en la noche una estrella.
No quedará la noche
Moriré y conmigo la suma
Del intolerable universo.
Borraré las pirámides, las medallas,
Los continentes y las caras.
Borraré la acumulación del pasado.
Haré polvo la historia, polvo el polvo.
Estoy mirando el último poniente.
Oigo el último pájaro.
Lego la nada a nadie.


De: BORGES, J.L. "La rosa profunda". In: _____ Obras completas. 1975-1985. Vol.2. Buenos Aires: Emecé, 1989, p.86.



O suicida

Não ficará na noite uma estrela.
Não ficará a noite.
Morrerei e comigo a suma
Do intolerável universo.
Apagarei as pirâmides, as medalhas,
Os continentes e as caras.
Apagarei a acumulação do passado.
Farei pó a história, pó o pó.
Estou olhando o último poente.
Ouço o último pássaro.
Lego o nada a ninguém.

4.12.07

Salgado Maranhão: Fero

FERO

Tento esculpir a litania
dos pássaros
e as palavras mordem
a inocência. Aferram-se
ao que é de pedra
e perda.

(Canto ao coração e tudo é víscera,
como na savana.)

Restolhos de espera
e crimes;
insights de insânia
e súplica; volúpias insolúveis
acossam-me a página
em branco
qual bandido bárbaro
ou mar revolto
a rasgar a calha
do poema.

Nada me resgata.
Não sei se sou quem morre
ou quem mata.


De: MARANHÃO, Salgado. Sol sangüíneo. Rio de Janeiro: Imago, 2002, p.65-6.

2.12.07

A poesia escrita

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Folha de São Paulo sábado, 1 de Dezembro de 2007:


A poesia escrita

EM REVISTAS e sítios de literatura, tenho lido textos que se queixam do estado atual da poesia. É verdade que, em todas as épocas, houve quem desprezasse os poemas que não seguissem os modelos tradicionais ou que não se distinguissem pela pátina do tempo. Contudo, as queixas a que me refiro não são exatamente dessa natureza.

O que se lamenta é, antes, que a poesia não pareça mais possuir o prestígio cultural de que já desfrutou um dia. Alega-se, por exemplo, que poema algum é capaz de ter, no mundo contemporâneo, um impacto comparável ao que determinados filmes, discos e concertos de rock têm.

Nem sempre coincidem os diagnósticos propostos, nem, conseqüentemente, as terapias para essa pretensa anemia poética. Alguns pensam que a poesia perdeu sua importância porque -tendo-se esquecido de que era originalmente articulada à fala e ao corpo- deixou-se confinar à escrita. O remédio, neste caso, seria, em última análise, que o poeta se tornasse o performer dos seus próprios poemas.

Outros, reintroduzindo, com nova terminologia, o velho e compreensível ressentimento contra as torres de marfim, julgam que a poesia se tornou irrelevante porque, tendo perdido contato real com as outras artes e, de maneira geral, com a realidade contemporânea, tornou-se incapaz de produzir formas dotadas de atualidade. O remédio, neste caso, seria, em última análise, que o poeta, fazendo questão de se imbuir no seu contexto cultural, refletisse no seu trabalho uma tomada de posição em relação a ele.

No fundo, as duas posições me parecem derivar da dificuldade desses autores de lidar com a exigência extrema e singular que a poesia escrita impõe não somente ao poeta, mas ao leitor.

De fato, na poesia oral primária, como na de Homero, o que o bardo recitava ou cantava era ligado à presença, à voz, à dicção, aos movimentos corporais dele. As palavras, a música e a dança se unificavam na sua figura. Algo do que ele recitava era repetição de coisas que já havia dito, algo era novo, e não havia nem há meio de se saber o que era antigo e o que era novo. Cunhou-se para essa situação a expressão "composition in performance" (composição durante a performance). Isso quer dizer que a produção e o consumo do poema são simultâneos. Hoje, o que lembra um pouco isso é o jazz, por um lado, e o flamenco, por outro.

De fato, a escrita rompe essa unidade oral. Quem lê um poema não precisa sequer saber quem o compôs. A criação é uma coisa e a apreciação, outra, separadas temporal e espacialmente: posso, por exemplo, apreciar um poema escrito em Roma, no século 2, em latim. Não interessam mais a voz, a dicção, o canto, os movimentos do corpo, a dança, a figura do poeta. É, em primeiro lugar, a voz interna do leitor que agora lê o poema.

O que interessa são as palavras e os sintagmas de que o poema se compõe: seus sentidos, sua sonoridade, seu ritmo, suas relações paronomásicas, suas aliterações, suas rimas, seus assíndetos, as relações icônicas que estabelecem... E o poema é lido, relido e comparado e contrastado, em princípio, com todos os poemas que se tornaram canônicos e com todos os poemas que o leitor conhece.

O poema é agora um objeto de arte, como uma pintura. Para apreciá-lo plenamente -como para apreciar plenamente uma pintura-, temos que lhe dedicar o nosso tempo, convocando e deixando que interajam uns com os outros todos os recursos de que dispomos: intelecto, experiência, emoção, sensibilidade, sensualidade, intuição, senso de humor etc.

Quanto melhor o poema, mais dos nossos recursos são por ele atualizados: e essa atualização mesma é a recompensa estética que ele nos oferece. Podemos dizer, portanto, que é o grau de poesia de um objeto, e não o seu grau de contemporaneidade, a verdadeira medida da atualidade que ele nos proporciona.

Para quem desse modo aprecia a poesia escrita, ela não perdeu nem um pingo do seu prestígio cultural nem do seu impacto. É verdade que a leitura de poemas não é popular como grande parte dos filmes, discos e concertos de rock, entre outras coisas. E por que teria de ser? Mesmo a maior parte das pessoas cultas raramente -e talvez nunca- queira fazer o esforço que a leitura de um poema exige. Mas por que seriam obrigadas a tal?

Há, de fato, tantos grandes filmes, discos e concertos de rock... Os poetas escrevem, em primeiro lugar, para aqueles que, como eles, acham incomparável o prazer proporcionado pela leitura de um grande poema.

29.11.07

Jean Baudrillard: de "À sombra das maiorias silenciosas"

Trecho de À sombra das maiorias silenciosas, de Jean Baudrillard:


Na noite da extradição de Klaus Croissant(1), a televisão transmitia um jogo de futebol em que a França disputava sua classificação para a Copa do Mundo. Algumas centenas de pessoas se manifestam diante da Santé, alguns advogados correm na noite, vinte milhões de pessoas passam sua noite diante da televisão. Quando a França ganhou, explosão de alegria popular. Horror e indignação dos espíritos esclarecidos diante dessa escandalosa indiferença. Le Monde: “21 horas. Nesta hora o advogado alemão já foi retirado da prisão da Santé. Daqui a pouco Rocheteau vai marcar o primeiro gol”. Melodrama da indignação. Nenhuma única interrogação sobre o mistério dessa indiferença. Uma única razão sempre invocada: a manipulação das massas pelo poder, sua mistificação pelo futebol, De qualquer maneira, essa indiferença não deveria existir, ela não tem nada a nos dizer. Em outros termos, a "maioria silenciosa" é despossuída até de sua indiferença, ela não tem nem mesmo o direito de que esta lhe seja reconhecida e imputada, é necessário que também esta apatia lhe seja insuflada pelo poder.

Que desprezo atrás dessa interpretação! Mistificadas, as massas não saberiam ter comportamento próprio. De tempos em tempos se lhes concede uma espontaneidade revolucionária através da qual elas vislumbram a “racionalidade do seu próprio desejo”, isso sim, mas Deus nos proteja de seu silêncio e de sua inércia. Ora, é exatamente essa indiferença que exigiria ser analisada na sua brutalidade positiva, em vez de ser creditada a uma magia branca, a uma alienação mágica que sempre desviaria as multidões de sua vocação revolucionária.

Mas, por outro lado, como é que ela consegue desviá-las? Com relação a este fato estranho, pode-se perguntar: por que após inúmeras revoluções e um século ou dois de aprendizagem política, apesar dos jornais, dos sindicatos, dos partidos, dos intelectuais e de todas as energias postas a educar e a mobilizar o povo, por que ainda se encontram (e se encontrará o mesmo em dez ou vinte anos) mil pessoas para se mobilizar e vinte milhões para ficar "passivas"? — e não somente passivas, mas por francamente preferirem, com toda boa fé e satisfação, e sem mesmo se perguntar por que, um jogo de futebol a um drama político e humano? É curioso que essa constatação jamais tenha subvertido a análise, reforçando-a, ao contrário, em sua fantasia de um poder todo-poderoso na manipulação, e de uma massa prostrada num coma ininteligível. Pois nada disso tudo é verdadeiro, e os dois são um equívoco: o poder não manipula nada e as massas não são nem enganadas nem mistificadas. O poder está muito satisfeito por colocar sobre o futebol uma responsabilidade fácil, ou seja, a de assumir a responsabilidade diabólica pelo embrutecimento das massas. Isso o conforta em sua ilusão de ser o poder, e desvia do fato bem mais perigoso de que essa indiferença das massas é sua verdadeira, sua única prática, porque não há outro ideal para inventar, não há nada a deplorar, mas tudo a analisar a respeito disso como fato bruto de distorção coletiva e de recusa de participar nos ideais todavia luminosos que lhes são propostos.

De: BAUDRILLARD, Jean. À sombra das maiorias silenciosas. São Paulo: Brasiliense, 1985, p.16-18,


Nota (retirada da Wikipedia):
1 - Klaus Croissant (1931-2002) era um advogado da Facção do Exército Vermelho que o promotor Rebmann mostrou “ter organizado em seu gabinete a reserva operacional do terrorismo alemão ocidental”. Contra sua prisão foi organizada uma campanha da qual, entre outros, Jean-Paul Sartre, Michel Foucault, Gilles Deleuze e Felix Guattari tomaram parte. Ele se refugiara na França em 10 de julho de 1977, antes de ser preso em Paris em 30 de setembro. Apesar de protestos e demonstrações na Alemanha, na França e na Itália, a corte de apelo criminal de Paris decidiu a favor da extradição para a República Federal da Alemanha em 16 de novembro de 1977, na noite do jogo de futebol a que Baudrillard se refere.

25.11.07

Adriano Espínola: Maramar

MARAMAR


Se tu queres amar,
procura logo o mar.

Ali enlaça o corpo
salgado noutro corpo.

No azul esquecimento
das águas, vai sedento

beber a luz da carne,
o gozo a pino e a tarde.

Tenta imitar a teia
das ondas e marés.

Dança na branca areia.
Outro será quem és.






De: ESPÍNOLA, Adriano. Praia provisória. Rio de Janeiro: Topbooks, 2006, p.16.

18.11.07

Democracia: formal ou profunda?

O Seguinte artigo foi publicado sábado, 17 de novembro, na minha coluna da Ilustrada, da Folha de São Paulo:

Democracia: formal ou profunda?

No dia 7 do corrente, em Caracas, no campus da Universidade Central da Venezuela, um grupo armado abriu fogo contra estudantes que regressavam de uma manifestação pelo adiamento do referendo sobre a reforma constitucional que, entre outras coisas, institucionalizaria a reeleição ilimitada do presidente Chávez, além de lhe ampliar os poderes. No dia 9, esses mesmos estudantes foram chamados por Chávez de fascistas.

No dia seguinte, em reunião da Cúpula Ibero-Americana de Chefes de Estado e de Governo, em Santiago, Chávez acusou de fascista o ex-premier espanhol Aznar, obrigando o atual premier, o socialista Zapatero, a lhe pedir que respeitasse outros chefes de Estado, apesar de suas diferenças políticas. Atropelando grosseiramente a fala de Zapatero, Chávez, como se sabe, acabou por provocar o rei Juan Carlos, da Espanha, a lhe sugerir que se calasse.

Não pode ter escapado a ninguém que a acusação de Chávez saíu pela culatra. O que realmente evoca o fascismo são, em primeiro lugar, o conteúdo da reforma constitucional por ele proposta; em segundo, o método plebiscitário com que pretende legitimá-la (lembremo-nos de que referendos e plebiscitos eram o método favorito de Hitler para “legitimar” os seus atos ilegais); em terceiro, o fato de que não somente o seu governo já cassou a concessão para transmissão em sinal aberto de uma emissora de televisão da oposição (a RCTV), mas pretende cassar a concessão de outra (a Globovisión); em quarto, a violência dos grupos armados dos partidários do líder bolivarianista ao atacar os estudantes; em quinto, o cinismo com que ele acusou de fascistas justamente as vítimas dessa violência; e, em sexto, a histrionice e a truculência verbal com que viola as regras da discussão racional.

Para mim, porém, o que mais causa preocupação é que, depois disso tudo, o presidente Lula tenha declarado que não falta democracia na Venezuela, pois ela já passou por “três referendos, três eleições não sei para quê, quatro plebiscitos”. Essa é a “democracia direta” (leia-se a “ditadura plebiscitária”) de Chávez: o povo aprova o que o governo propõe. E é essa a “democracia direta” que pretendem os petistas que defendem a modificação da Constituição para permitir a terceira reeleição do Presidente, a ampliação dos seus poderes, a diminuição dos poderes do Congresso etc.

A verdade é que as únicas democracias que se conhecem são as que se baseiam no equilíbrio dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. O fortalecimento de qualquer um desses poderes em detrimento dos outros (ou o enfraquecimento de qualquer um deles em proveito dos outros) é extremamente perigoso. A experiência latino-americana tem sido a da hipertrofia do executivo. O resultado é, inevitavelmente, a ditadura. Exatamente isso é o que está a ocorrer na Venezuela e ocorrerá também no Brasil, caso se enfraqueça o legislativo, usando o artifício, caro aos regimes populistas e totalitários, de transferir suas atribuições a referendos e plebiscitos.

Grande parte da esquerda, nada tendo aprendido com as terríveis experiências das ditaduras de Stalin, Mao ou Pol-Pot, continua a desvalorizar o que qualifica de “democracia formal” em nome de – como se dizia, semana passada, no seminário da Academia da Latinidade, que teve lugar em Lima – uma “democracia profunda”.

A verdadeira democracia não pode deixar de ser formal porque não se pode prender a nenhum objetivo, programa, partido político ou líder particular, uma vez que, não podendo pressupor que este ou aquele seja dono da verdade absoluta, deve estar aberta a todos, exceto aos que atentem contra ela. Que seja eleito este ou aquele candidato ou partido é inteiramente contingente à verdadeira democracia. Necessária é a garantia de que candidatos ou partidos diferentes tenham a possibilidade real de alcançar o poder.

Nunca é demais repetir que absolutamente nada pode justificar qualquer atentado contra o Estado de direito, a livre expressão do pensamento, a maximização da liberdade individual, a coexistência de uma multiplicidade de culturas e formas de vida, a autonomia da ciência, a autonomia da arte etc.: em suma, nada pode justificar qualquer atentado contra a preservação dos direitos humanos e da sociedade aberta.

O regime político que ameace a verdadeira democracia, que é a democracia formal, deve ser chamado, não de democracia – profunda ou rasa –, mas de ditadura.

14.11.07

Paulo Guedes: A estética fascista

O seguinte artigo de Paulo Guedes foi publicado em O Globo, segunda-feira, 12 de novembro de 2007:

A estética fascista

O rei Juan Carlos, da Espanha, mandou o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, calar a boca durante a Cúpula Ibero-Americana, em Santiago do Chile. Chávez acusara de fascista o ex-presidente do governo espanhol José María Aznar. Por mais simpatia que se tenha pelas intenções da "revolução bolivariana", os sintomas desta terrível doença política, o fascismo, estão mais próximos de Chávez do que ele pensa. Segundo Luis Dupeux, em "História cultural da Alemanha: 1919-1960" (1989), "a utilização de palavras de ordem e das manifestações de massa foram comuns aos nazistas e fascistas. Bem como a gradual interdição da imprensa por um conjunto de leis e decretos sempre assegurando a legalidade do sistema". Fechamento da RCTV?
"Na mais visual de todas as formas, o fascismo se apresenta por vívidas imagens: um demagogo discursando bombasticamente para uma multidão em êxtase; jovens desfilando em paradas; militantes espancando membros de alguma demonizada minoria. Nacionalismo, ataques a propriedades, recurso à violência, voluntarismo, antiintelectualismo, rejeição a soluções de compromisso, desprezo pela sociedade estabelecida foram características do fascismo", registra Robert Paxton, em "A anatomia do fascismo" (2005).
Prossegue o autor: "Os primeiros movimentos fascistas ostentavam também seu desprezo pelos valores burgueses, pelo "dinheiro, imundo dinheiro", atacando o capitalismo financeiro internacional com veemência. Prometeram expropriar os donos de loja em favor de artesãos, e os proprietários de terra em favor de camponeses. Exploraram as vítimas da industrialização rápida e da globalização, os perdedores da modernização, usando as técnicas de propaganda mais modernas. Política de massas, tentava apelar sobretudo às emoções, pelo uso de retórica intensamente carregada. O fascismo ajuda um povo a realizar seu destino. Repousa na união mística do líder com o destino histórico de seu povo, agora plenamente consciente de sua identidade e seu poder." Líder, povo, identidade e poder "bolivarianos"?
"Um artifício usado pelos fascistas eram as estruturas paralelas, tanto na ascensão quanto no exercício do poder. O Estado oficial e essas estruturas conferiam ao regime sua bizarra mistura de legalismo e de violência arbitrária." Chavistas atacando universitários?
"Tendo chegado ao poder na legalidade, líderes fascistas podiam exercê-lo apenas nos termos da Constituição. Seu poder era limitado. O golpe dos fascistas foi transformar um cargo constitucional em autoridade pessoal ilimitada, controlando por completo o Estado. Os Parlamentos perderam o poder, e as eleições foram substituídas por plebiscitos do tipo "sim ou não"."
E, a propósito do alerta do senador José Sarney para a possibilidade de um futuro confronto, e também da manchete segundo a qual os comandantes militares pressionam o Congresso por mais verbas para o reaparelhamento das Forças Armadas, adverte Paxton: "Parece ser regra geral que a guerra seja indispensável à manutenção do tônus muscular do fascismo. Pois o ápice da experiência estética fascista seria a guerra."

10.11.07

Borges: Límites

Jorge Luís Borges
Límites

Hay una línea de Verlaine que no volveré a recordar,
Hay una calle próxima que está vedada a mis pasos,
Hay un espejo que me ha visto por última vez,
Hay una puerta que he cerrado hasta el fin del mundo.
Entre los libros de mi biblioteca (estoy viéndolos)
Hay alguno que ya nunca abriré.
Este verano cumpliré cincuenta años:
La muerte me desgasta, incesante.
De Inscripciónes (Montevideo, 1923), de Julio Platero Haedo

BORGES, J.L. “Límites”. In: “El hacedor” Obras completas. Buenos Aires: Emecé Editoras, 1974, p.849.

Limites
Há uma linha de Verlaine que não voltarei a recordar,
Há uma rua próxima que está vedada a meus passos,
Há um espelho que me viu pela última vez,
Há uma porta que fechei até o fim do mundo.
Entre os livros de minha biblioteca (estou vendo-os)
Há algum que já nunca abrirei.
Este verão cumprirei cinqüenta anos:
A morte me desgasta, incessante.
De Inscripciónes (Montevideo, 1923), de Julio Platero Haedo

6.11.07

Alba Zaluar: Inverter não é transformar

O seguinte artigo de Alba Zaluar foi publicado na sua coluna da Folha de São Paulo, segunda-feira, 15 de outubro de 2007:


Inverter não é transformar

A IGUALDADE tem sido objeto de uma infindável discussão teórica. Há os que afirmam ser ela uma condição inalcançável, visto que seres humanos diferem em suas capacidades, talentos e disposição para o trabalho; há os que ressaltam a necessidade como o critério para a distribuição da riqueza produzida. Os primeiros, filósofos morais do liberalismo político, preocupam-se com as violações à liberdade que a busca incessante da igualdade vem a trazer. Os segundos, adeptos da economia marxista, acreditam que dar a cada um segundo a sua necessidade inclui o princípio de receber de cada um segundo a sua habilidade de contribuir economicamente.
Nenhum pensador da igualdade defendeu a idéia de que seria possível obter o necessário por fraude, força, roubo, coerção ou dano a outras pessoas. Esse princípio moral está também em Marx, que exaltava o valor do trabalho -o pago e o não pago- e visualizava uma sociedade futura em que essa distribuição seria feita sem coerção de qualquer espécie.
Aqui no Brasil, a discussão tomou rumos indefensáveis. Quem nega a um branco bem-sucedido, mesmo que vindo de meios sociais modestos, o direito de consumir (que inclui portar) os bens disponíveis socialmente, não está recusando para si mesmo, um negro oriundo de favelas e periferias, esse gozo.
Rappers são conhecidos no mundo todo por seu sucesso e sua ilimitada sede de consumo. Coleções de tênis, roupas de marca, automóveis do ano, festas extravagantes são alguns itens listados nos seus currículos de consumidores. E, claro, não se imolam pelo sucesso que os destacou.
Defender o roubo como recurso de distribuição de renda revela um enorme desconhecimento das redes e tramas do submundo do crime, onde grassa o capitalismo mais selvagem de que se tem notícia. Ou bem a pessoa que roubou vai portar esse objeto, que apenas muda de mãos e continua a simbolizar a desigualdade reinante, ou ela vai vendê-lo a um receptador que pagará muito pouco e fará um hiperlucro comercial, ambos sem produzir riqueza nenhuma. Para onde foi a distribuição de renda? Para alimentar a acumulação do receptador e a ilusão do ladrão que precisa voltar a roubar e, portanto, está sempre a se arriscar em benefício de outrem.
Com tanto incentivo a ganhar dinheiro fácil, estimula-se exponencialmente a acumulação de riquezas em poucas mãos. Se as defesas morais contra a fraude e o roubo continuarem a ser destruídas tão hipocritamente, a produção de riquezas será reduzida e o estoque de riquezas do país encolhido a tal ponto que não teremos nem consumo nem muito menos a tão almejada igualdade.

Alba Zaluar

4.11.07

Curso "A Arte do Poeta"


Inscrições pelo tel. (21) 2286-3299
ou pelo site www.polodepensamento.com.br
Curso iniciando no dia 06 de novembro

O curso pretende investigar a natureza da poesia e a sua relação tanto com as outras artes quanto com a filosofia; interrogar a produção poética contemporânea e reconsiderar a tradição; avaliar a experiência da modernidade e, em particular, a experiência da vanguarda; discutir as dicotomias tradicionais, tais como verso e prosa, inspiração e trabalho, forma e conteúdo, continuidade e ruptura etc.; revisitar as formas e as técnicas de versificação; reproblematizar a relação entre poesia e letra de música e, por fim, questionar o sentido e os caminhos da poesia nos mundos da mídia e da Internet.

06 de novembro O que é a poesia? A poesia na tradição Ocidental. Homero e a poesia oral primária. O mito e o epos.

13 de novembro A natureza do poema escrito. A leitura do poema. A poesia e o juízo de valor. A poesia e o legado da tradição.

27 de novembro A poesia e a música. A poesia e a filosofia. A poesia e os novos meios.

04 de dezembro A poesia e o legado da vanguarda. As formas poéticas. A poesia e a modernidade.

4 aulas às terças-feiras, das 19h30 às 21h30
Valor: R$ 240,00 (50% na inscrição e o restante 30 dias após o início do curso; 10% de desconto no pagamento à vista efetuado até 15 dias antes do início do curso)

POP-Pólo de Pensamento Contemporâneo
Rua Conde Afonso Celso, 103 - Jardim Botânico - CEP 22461-060
Tel. (21) 2286-3299 e 2286-3682

A ciência e Deus

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Ilustrada, da Folha de São Paulo, sábado, 3 de novembro de 2007:


A ciência e Deus


AS MAIS TRADICIONAIS "provas" da existência de Deus -a "prova ontológica", de Anselmo de Canterbury, e as "cinco vias", de Tomás de Aquino- jamais se recuperaram da refutação que sofreram, por obra de Kant, no século 18. Assim, entende-se que, em seu livro "Deus, um Delírio", Richard Dawkins não lhes dedique muita atenção.

Por outro lado, sendo um biólogo, Dawkins se preocupa principalmente com as pretensões dos defensores do "intelligent design" (que, numa de suas típicas tiradas, ele chama de "criacionismo de smoking"). Estes alegam que a vida, os seres vivos, o ser humano etc. são complexos demais para terem sido produzidos pelo acaso.

Segundo eles, pensar o contrário seria como supor que um furacão que varresse um ferro-velho seria capaz de montar um Boeing 747. Como não dá para crer que algo tão improvável ocorra, eles inferem que tais coisas só podem ter sido produzidas por um designer ou projetista, isto é, por Deus.

A partir dessas considerações, explica-se que Dawkins trate a existência de Deus à maneira de uma hipótese científica como outra qualquer. Aqui não há como não lembrar a lapidar resposta do grande astrônomo Laplace a Napoleão, quando este lhe perguntou por que não mencionara Deus ao explicar o funcionamento do sistema solar: "Excelência, não precisei dessa hipótese".
Pois bem, Dawkins se propõe a considerar a hipótese científica de que "existe uma inteligência sobre-humana e sobrenatural que deliberadamente projetou ("designed') e criou o universo e tudo o que nele se encontra, inclusive a nós".

A que conclusões chega? Em primeiro lugar, ele concorda que realidades tão complexas não podem ter sido produzidas pelo mero acaso. Em segundo lugar, porém, ele nega que elas possam ser satisfatoriamente explicadas por um designer. Por quê? Porque, dado que o designer de alguma coisa não pode deixar de ser mais complexo do que essa coisa, seria ainda mais difícil explicar a existência dele do que a dela. Será preciso então apelar a um outro designer para explicar o primeiro, e depois a outro para explicar o segundo, e assim ao infinito: o que desqualifica essa explicação. Desse modo, revela-se inaceitável a hipótese da existência de Deus.

Segundo Dawkins, o que realmente dá conta da produção de coisas extremamente improváveis como o ser humano não é nem o mero acaso nem o design, mas o processo de seleção natural. Este consiste na produção de algo improvável por meio de inúmeras etapas. "Cada uma das etapas", diz ele, "é um tanto improvável, mas não irrealizável. Quando um grande número desses eventos um tanto improváveis se acumula numa série, o produto final da acumulação é de fato muito improvável, tão improvável que não poderia ter sido produzido pelo mero acaso".

É esse resultado final do processo de seleção natural que é usado pelos proponentes do "intelligent design" (incapazes de compreender o poder da acumulação gradativa de improbabilidades) como argumento para a sua modalidade de criacionismo.

Os filósofos ou teólogos que alegam, contra o procedimento de Dawkins, que ele não está levando em conta o fato de que Deus não tem causa imanente, uma vez que é transcendente, de que Deus é uma primeira causa incausada etc., não têm cabimento aqui, já que Dawkins não está senão examinando a hipótese fundamental do "intelligent design", que se pretende puramente científica, e rechaçando-a nos próprios termos em que ela se propõe.

E a verdade é que a argumentação de Dawkins que acabo de descrever só tem sentido se entendida desse modo, como uma espécie de redução ao absurdo da teoria do "intelligent design". Por quê? Porque o "intelligent design" jamais poderia realmente ser considerado como uma hipótese científica.

Quando Laplace diz que não precisa da hipótese de Deus, está, na verdade, explicitando a principal regra do jogo constitutivo da própria ciência: de toda ciência. Deus não vale como hipótese porque tal hipótese explicaria tudo e qualquer coisa: logo, não explicaria nada. Assim, ainda que, pessoalmente, um cientista acredite na existência de Deus, ele não pode, sem trair a sua ciência, aduzir Deus para "explicar" coisa alguma.

A ciência é exatamente a tentativa de explicar o mundo como se Deus não existisse. Não ter deixado isso suficientemente claro -talvez por não o ter suficientemente compreendido- é certamente um dos maiores erros cometidos pelo autor de "Deus, um Delírio".

2.11.07

Calderón de la Barca: de La vida es sueño

Monólogo de Segismundo, Jornada segunda, escena XIX de La vida es sueño, de Calderón de la Barca:


Es verdad; pues reprimamos
esta fiera condición,
esta furia, esta ambición,
por si alguna vez soñamos:
y sí haremos, pues estamos
en mundo tan singular,
que el vivir sólo es soñar;
y la experiencia me enseña
que el hombre que vive, sueña
lo que es, hasta dispertar.
Sueña el rey que es rey, y vive
con este engaño mandando,
disponiendo y gobernando;
y este aplauso, que recibe
prestado, en el viento escribe;
y en cenizas le convierte
la muerte (¡desdicha fuerte!):
¿que hay quien intente reinar,
viendo que ha de dispertar
en el sueño de la muerte?
Sueña el rico en su riqueza
que más cuidados le ofrece;
sueña el pobre que padece
su miseria y su pobreza;
sueña el que a medrar empieza,
sueña el que afana y pretende,
sueña el que agravia y ofende,
y en el mundo, en conclusión,
todos sueñan lo que son,
aunque ninguno lo entiende.
Yo sueño que estoy aquí
destas prisiones cargado,
y soñé que en otro estado
más lisonjero me vi.
¿Qué es la vida? Un frenesí,
¿Qué es la vida? Una ilusión,
una sombra, una ficción,
y el mayor bien es pequeño:
que toda la vida es sueño,
y los sueños, sueños son.


De: CALDERÓN DE LA BARCA, Pedro. La vida es sueño. New York: Double Day, 1961, p.75.

29.10.07

Hölderlin: Outrora e agora 2

O mesmo poema de Hölderlin, com uma pequena alteração na sua tradução, sugerida pelo Paulo de Toledo:

Outrora e agora

De manhã era feliz, quando jovem,
E à noite chorava; já hoje, mais velho,
Começo meu dia em dúvida, porém
Seu fim é para mim sagrado e sereno.

28.10.07

Hölderlin: Outrora e agora

Outrora e agora

Quando jovem, de manhã era feliz
E à noite chorava; já hoje, mais velho,
Começo meu dia em dúvida, porém
Seu fim é para mim sagrado e sereno.



Ehmals und jetzt

In jüngern Tagen war ich des Morgens froh,
Des Abends weint’ich; jetzt, da ich älter bin,
Beginn ich zweifelnd meinen Tag, doch
Heilig und heiter ist mir sein Ende.


De: HÖLDERLIN, Friedrich. “Gedichte”. In: Sämtliche Werke und Briefe. Vol. 1. München: Carl Hanser, 1970. P.221.

25.10.07

Nênia

NÊNIA

A morte nada foi para ele, pois enquanto vivia não havia a morte e, agora que há, ele já não vive. Não temer a morte tornava-lhe a vida mais leve e o poupava de desejar a imortalidade em vão. Sua vida era infinita, não porque se estendesse indefinidamente no tempo mas porque, como um campo visual, não tinha limite. Tal qual outras coisas preciosas, ela não se media pela extensão mas pela intensidade. Louvemos e contemos no número dos felizes os que bem empregaram o parco tempo que a sorte lhes emprestou. Bom não é viver, mas viver bem. Ele viu a luz do dia, teve amigos, trabalhou, amou e floresceu. Às vezes anuviava-se o seu brilho. Às vezes era radiante. Quem pergunta quanto tempo viveu? Viveu e ilumina nossa memória.


De: CICERO, Antonio. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002, p.57.

24.10.07

Mark Twain: sobre a morte

Uma declaração de Mark Twain, citada por Dawkins na mesma página em que cita o pensamento de Russell que postei ontem:

Não temo a morte. Já fui morto por bilhões e bilhões de anos, antes de nascer, e isso não me causou o menor incômodo.

Citada por DAWKINS, R. The God delusion. Boston: Houghton Mifflin Company, 2006, p.354.

Bertrand Russell: de No que acredito

Bertrand Russell, trecho de “No que acredito”:

Acredito que ao morrer apodrecerei e nada do meu eu sobreviverá. Não sou jovem e amo a vida. Mas desdenho tremer de terror à idéia do aniquilamento. A felicidade não se torna menos verdadeira por ter que chegar ao fim, e o pensamento e o amor não perdem o seu valor por não durarem para sempre. Muitos homens já se portaram orgulhosamente no cadafalso; certamente o mesmo orgulho deveria nos ensinar a pensar verdadeiramente sobre o posto do homem no mundo. Mesmo se inicialmente as janelas abertas da ciência fazem-nos tremer após o quente aconchego dos mitos antropomórficos tradicionais, no final o ar fresco revigora, e os grandes espaços têm o seu próprio esplendor.

Citado por DAWKINS, R. The God delusion. Boston: Houghton Mifflin Company, 2006, p.354.

21.10.07

Sobre "Deus, um delírio"

O seguinte artigo foi publicado sábado, 20 de outubro, na minha coluna da Ilustrada da Folha de São Paulo:

Sobre "Deus, um Delírio"


NA COLUNA passada, fiquei de comentar o livro de Richard Dawkins "Deus, um Delírio". Afirmei então que o considerava um livro desigual, mas que merecia ser lido. Trata-se de uma obra ambiciosa, pois pretende demonstrar, para um público culto, porém leigo, não apenas que a probabilidade de que Deus não exista é infinitamente maior do que a probabilidade de que exista, mas que o ateísmo é uma posição eticamente superior ao teísmo.
Segue-se que uma sociedade democrática composta de indivíduos que, em sua maioria, conseguissem dispensar a religião -ou, pelo menos, torná-la assunto puramente privado- teria grande probabilidade de ser melhor e mais feliz do que as sociedades em que isso não havia ocorrido.
Tal convicção explica por que "Deus um Delírio" não tem apenas um objetivo teórico, mas também -e sobretudo- prático. Não se trata, para o seu autor, meramente de interpretar, mas também de transformar o mundo. Daí o seu caráter militante.
Muito esquematicamente, pode-se dizer que o esforço de Dawkins se encaminha por três vertentes diferentes, porém interligadas: a do esclarecimento de determinados conceitos, a da crítica ao teísmo e a da defesa do ateísmo.
No que diz respeito ao primeiro ponto -ao qual, dadas as limitações espaciais, terei que me limitar, ao menos no presente artigo-, Dawkins faz algumas distinções como, por exemplo, entre deísmo, panteísmo e teísmo, entre as diferentes modalidades de agnosticismo etc. O sentido dessas distinções elementares não é meramente didático, mas polêmico.
Explico. Creio não ter sido o único adolescente que, ao manifestar certas dúvidas, ouvia dos adultos reprimendas como: "Quem é você para duvidar da existência de Deus, quando os maiores gênios da humanidade, como Einstein, acreditam nela?".
Pois bem, as distinções feitas por Dawkins se dirigem contra esse tipo de argumento. É que grande parte dos pensadores citados como crentes em Deus são, na verdade, deístas ou panteístas; e nem estes nem aqueles acreditam num Deus pessoal, tal qual o das religiões abraâmicas, que são o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. Para a maior parte dos deístas, "Deus" é o nome do princípio e causa do universo, no qual, porém, uma vez criado, jamais interfere. Sendo assim, o Deus dos deístas não produz milagres nem se interessa pelos homens.
Pode haver algo mais distante do Deus do Velho ou do Novo Testamento? Sim: o Deus dos panteístas, que se identifica com o próprio universo, a natureza ou as leis da natureza. Tal é o Deus de Einstein, que, neste ponto, se identifica, segundo ele mesmo, com Spinoza.
A rigor, pode-se, portanto, dizer que o descobridor da teoria da relatividade se encontra muito mais próximo do ateísmo do que do Deus de Abraão. "Não creio num Deus pessoal", afirmou ele certa vez, "e jamais neguei isso: sempre o exprimi com clareza".
Como, então, forjou-se o mito da religiosidade de Einstein? Entre as razões para se pensar que ele acreditava em Deus está, sem dúvida, o seu uso metafórico -por puro charme- dessa palavra. Algumas das suas mais famosas declarações são "Deus não joga dados", que, como diz Dawkins, pode ser interpretada como "o acaso não se encontra no cerne das coisas", ou a pergunta retórica "Deus tinha escolha, ao criar o universo?", que se pode entender como "o universo poderia ter começado de outro modo?"
Porém, mais importante é que, como Dawkins observa, com razão, é comum entre os cientistas e racionalistas uma reação quase mística -mas que nada tem de sobrenatural- à natureza e ao universo. "Se há algo em mim que pode ser considerado religioso", disse Einstein, "é a admiração incontida pela estrutura do mundo, na medida em que a ciência é capaz de revelá-la".
O fato de que há, no fundo, uma incompatibilidade entre essa atitude e a religião é expresso pela perplexidade que o astrônomo Carl Sagan, citado por Dawkins, exprime ao se perguntar: "Como é possível que nenhuma grande religião tenha olhado para a ciência e concluído: "Isto é melhor do que pensávamos! O universo é muito maior do que nossos profetas haviam dito, mais grandioso, mais sutil, mais elegante'?".
Confesso sentir um espanto semelhante ao de Sagan. Ademais, parece-me que, para cada ser humano, o mais grandioso é ter a consciência de tal grandiosidade, de tal maravilha e de tal mistério.

18.10.07

Oswald de Andrade: Relógio

Relógio

As coisas são
As coisas vêm
As coisas vão
As coisas
Vão e vêm
Não em vão
As horas
Vão e vêm
Não em vão

16.10.07

Fernando Pinto do Amaral: "Arte poética"

Do poeta português Fernando Pinto do Amaral, a bela “Arte poética”:


Arte Poética

Palavras,
só palavras, nada mais
que a vã matéria, o seu sentido
eco de muitos ecos, repetido
reflexo de poderes tão irreais

como essas emoções graças às quais
terei de vez em quando pretendido
dizer um só segredo a um só ouvido
ciente de que nunca são iguais

os segredos e ouvidos que procuro
às cegas neste mar sempre obscuro
onde a voz deságua como um rio

sem nascente nem foz - apenas uma
incerta confidência que se esfuma
e só foi minha enquanto me fugiu.

10.10.07

Francisco Bosco: O indireto afetivo na linguagem do carioca

O seguinte ensaio é uma das muitas pérolas do maravilhoso livro do Francisco Bosco, Banalogias:


O Indireto Afetivo na Linguagem do Carioca

No Rio de Janeiro contemporâneo há uma figura lingüístico-afetiva que pontua as relações sociais entre cariocas, ou entre um carioca e um estrangeiro. Trata-se – e todo carioca ou qualquer pessoa que já esteve no Rio o reconhecerá – do famigerado
diálogo:

— Rapaz, há quanto tempo!
— Pois é, que bom te ver!
— Poxa, a gente tinha que se falar mais!
— É mesmo, vou te ligar.
— Mas liga mesmo, pra gente se ver, botar o papo em dia.
— Não, pode deixar, vou ligar com certeza.
— Beleza, então. Adorei te ver!
— Eu também, te ligo então. Um grande abraço!

Isso ou variações.

Pois para muitos cariocas, que já estão mais do que familiarizados com o diálogo, e talvez sobretudo para os não-cariocas, que constataram perplexos o encaminhamento futuro dessas promessas, essa figura lingüística acaba por se configurar como uma situação de constrangimento. Afinal, todos sabemos que não haverá telefonema algum. Todos, literalmente, a começar pelos próprios personagens da conversa. E a fórmula do constrangimento, já se disse, é precisamente esta: todos sabem que todos sabem e entretanto ninguém o pode admitir. Curiosas sutilezas sociais. O que impede que se desencubra o não-dito do diálogo é que esse não-dito é sentido como uma mentira: não haverá telefonema, um não ligará para o outro, e vice-versa. Assim, o não-dito é mantido e desenvolvido, cria-se uma conversa sustentando a sua tensão. Está configurada a situação constrangedora.

Mas o que faz com que a situação seja por muitos experimentada como constrangedora é justamente o entendimento desse não-dito, dessa promessa que sabemos sem fundos ("te ligo, com certeza"), como sendo uma mentira. Fulano disse que ia ligar, mas não ligou: mentira, portanto. Pior: fulano assegurou que ia ligar, enfatizou, sublinhou a promessa com todas as inflexões e entonações da convicção. Mentira ainda mais grave, gravíssima.

Entretanto, tudo muda se pensarmos o recalcado do diálogo, o não-dito, não como uma mentira, mas como um modo indireto da verdade. Assim, o horizonte em que a promessa passa a ser verdadeira não é mais a sua efetivação posterior, mas o que, dentro dela, vibra afetivamente: "te ligo" passa a significar "gosto de você", "vou ligar com certeza" traduz-se por "gosto muito de você", e assim por diante, a intensidade afetiva aumentando à proporção das entonações e expressões de segurança. Fernando Pessoa dizia que "a linguagem pode mentir, mas a voz não". Ora, nesse fragmento de carioquês a verdade está na voz, no afeto que nela pulsa e se manifesta explicitamente. Mas, cabe então a pergunta: por que engajar esse afeto em uma promessa sem fundos, que se sabe não será cumprida? Por que comprometer sua verdade associando-o a uma efetivação que não ocorrerá?

A origem dessa curiosa figura sócio-lingüístico-afetiva é uma outra figura: uma sutil transformação da amizade que costuma se dar numa das curvas impostas pelo tempo a determinadas relações. Essa transformação ocorre quando uma amizade intensa passa de um estado de intimidade diariamente atualizada – conversas freqüentes, presença física constante, confissões, vidas em permanente comunicação – para um estado de amizade em que a distância se interpõe e dispersa as trajetórias dos amigos, porém algo da intimidade da outra configuração resiste a essa nova forma e se mantém intenso, incólume à distância. Esse "algo da intimidade" se transforma em um afeto constante que, adormecido e escondido pela distância, emerge efusivamente na presença do amigo. Afeto a distância. Quase-intimidade que se evidencia, para deleite dos amigos, a cada vez que o acaso propicia um encontro. Mas, em geral, os movimentos divergentes das trajetórias de vida são irreversíveis, na medida em que atingem o processo de subjetivação de cada um dos amigos: estes já não são mais os mesmos, pensam e sentem de forma diferente, são outros, não podem ter a cumplicidade que tinham antes, não da mesma forma. O que resiste, o afeto, é resultado de uma intimidade de tal modo condensada que, por excesso, atingiu como que uma existência própria, interpessoal, portanto imune às mudanças de vida dos amigos.

Perde-se a intimidade, já não se sabe tão bem da vida do outro, mas fica, incorruptível, o afeto, que vem à tona nos encontros fortuitos. Pois, justamente, é essa consciência (que pode ser apenas intuída, porém claramente) da perda irreversível da intimidade, da impossível recuperação da amizade, que virá a produzir o diálogo de que estamos tratando. O afeto é verdadeiro, é uma positividade, mas há em sua formação uma perda, uma impossibilidade: a da intimidade perdida. Isto é, telefonar seria um erro, seria apostar na improvável recuperação do estado antigo da amizade. Doravante a amizade é isso: o afeto efusivo, a alegria dos encontros fortuitos – que entretanto tenderia a perder a efusão se se tentasse um movimento restaurador. O recalcado do diálogo, o não-dito, se forma nesse ponto: é que seria duro demais trazer à tona o núcleo de perda e de impossibilidade que se encontra na formação de um afeto tão positivo, tão efusivamente manifestado. Opta-se por escondê-lo, e para tanto faz-se necessário mascará-lo com a promessa da restauração: "Vou te ligar." Quanto maior a consciência ou a intuição — da impossibilidade, e de quanta perda ela encerra, maior a necessidade de mascaramento: "Vou te ligar, com certeza."

Assim, curiosamente, quanto maior a mentira, maior a verdade. A verdade do afeto não se subordina à efetivação da promessa, mas se manifesta, de forma indireta, através do prometido: "Vou te ligar, com certeza" significa apenas "Gosto muito de você". O não cumprimento da promessa significa a consciência (mesmo que intuitiva) da impossibilidade de restauração da amizade, e o recalcado do diálogo é o mascaramento protetor de um afeto delicado. Pois a verdade nua e crua, desprotegida, poderia ser muito... constrangedora: "Rapaz, há quanto tempo! Veja, gosto de você, fomos muito íntimos, mas hoje somos bem diferentes, não acredito que possamos retomar a antiga cumplicidade, por isso vamos apenas gozar desse momento de alegria fortuita, sem fazer promessas que não poderemos cumprir." Logo o constrangimento também surge de um excesso de dizer, e não apenas de um não-dito gritante. Na verdade, nosso famigerado diálogo carioca só se torna constrangedor se sua verdade nuclear – o afeto incorruptível – não for forte o suficiente para sustentar, à base de cumplicidade, a tensão do mascaramento. Quando o mascaramento é bem-feito, o diálogo transcorre sob intensa e efêmera efusão afetiva – e somente na despedida passa por nós a brisa de uma melancolia.

De: BOSCO, Francisco. Banalogias. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.

7.10.07

A crítica e a religião

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Ilustrada, da Folha de São Paulo, sábado, 6 de Outubro de 2007:


A crítica e a religião

RECENTEMENTE, FORAM publicados vários livros que contestam a religião e mesmo a crença na existência de Deus. Creio que o de Richard Dawkins ("Deus, um Delírio"; Cia. das Letras, 2007; 528 pág., R$ 54) é, até agora, o mais conhecido e discutido, pelo menos no Brasil. Confesso que, inicialmente, não me senti muito animado a lê-lo. É que, tendo conferido algumas recensões de "Deus, um Delírio", eu havia ficado com a impressão de que o forte desse livro era tentar dar uma explicação darwinista das religiões e da crença na existência de Deus.

Ora, embora eu tenha uma admiração imensa pela teoria científica da evolução das espécies, sempre considerei excessivamente grosseiras todas as tentativas que até hoje conheci de exportá-la para o campo da sociedade humana.

Entretanto, alguns excelentes artigos, dentre os quais um do próprio Dawkins e outro do Marcelo Coelho (ambos na Ilustrada de 25/08), acabaram por atiçar a minha curiosidade a tal ponto que, na semana passada, decidi ler "Deus, um Delírio". Resultado: cheguei à conclusão de que se trata, em suma, de um livro desigual, mas que certamente merece ser lido.

Deixarei para comentar o livro do Dawkins outro dia, pois hoje quero tocar em algumas questões incidentais. Há quem se surpreenda com o fato de que, aparentemente, foram editados mais livros anti-religiosos na primeira década do século 21 do que nas últimas cinco décadas do século 20. Só dos livros traduzidos para o português, lembro-me, além do de Dawkins, do de Michel Onfray ("Tratado de Ateologia"; Martins Fontes, 2006), do de Daniel Dennet ("Quebrando o Encanto"; Globo, 2006), e do de Christopher Hitchens ("Deus Não É Grande"; Ediouro, 2007).

A que se deve esse fenômeno editorial? Em grande parte, sem dúvida, à percepção do risco que correm os direitos humanos em toda parte do mundo – ou melhor, à percepção do risco que corre o próprio mundo –, tanto em conseqüência dos atentados terroristas perpetrados por extremistas religiosos muçulmanos quanto em conseqüência do aumento da influência dos extremistas religiosos cristãos sobre a política interna e externa norte-americana.

Mas a questão realmente interessante talvez seja outra: por que é que, ao contrário do que ocorreu nos séculos 18 e 19, é difícil lembrar algum livro desse tipo que se tenha destacado, no século 20, na Europa ou nos Estados Unidos? Houve, sem dúvida, inúmeros ateus e agnósticos entre os cientistas, filósofos, escritores e artistas da época, mas, com a exceção de Bertrand Russell, não me ocorre nenhum pensador importante que tenha escrito específica e explicitamente contra a religião.

Será talvez que se haja pensado, como Marx, que a crítica da religião já se tivesse completado? A melhor descrição que conheço do estado de espírito em que, no que toca a religião, a maior parte dos intelectuais se encontrava no final do século 20 é a que o filósofo norte-americano John Searle fez, no seu admirável livro "Mind, Language and Society", de 1998.

Para ele, o mundo moderno simplesmente se desmistificara. Um exemplo dessa desmistificação é, segundo ele, a história de são Miniato, em honra ao qual ergue-se a igreja de San Miniato, em Florença. São Miniato foi um mártir cristão. Tendo sido condenado à morte, ele sobreviveu ao ataque de leões na arena, mas acabou sendo decapitado. Levantou-se então, pôs a cabeça debaixo do braço, saiu da arena, atravessou o rio e saiu da cidade. Em seguida, subiu até o topo do morro ao sul do Arno, e lá se sentou. Nesse lugar foi construída a sua igreja.

Segundo Searle, hoje os guias da cidade têm até vergonha de contar essa história. "O que interessa", diz, "não é o fato de que a consideramos falsa, mas o fato de que não a levamos a sério nem mesmo como uma possibilidade".

"Hoje em dia", observava Searle, "até evocar a questão da existência de Deus é considerado de mau gosto. Os assuntos religiosos são como os que dizem respeito às preferências sexuais de cada qual: não devem ser discutidos em público, e mesmo as questões abstratas só são discutidas por chatos".

Searle escreveu o texto há menos de dez anos; no entanto, ele já parece pertencer a outra época. Em 2007, é evidente que, longe de se limitarem à esfera privada, algumas religiões alimentam o sonho teocrático de privatizar o espaço público e policiar o privado. Assim, é importante que se escrevam e discutam livros como o de Dawkins.

4.10.07

Hudson Carvalho: "Tropa de Elite"

Um artigo do jornalista Hudson Carvalho, especialmente para o nosso blog:


“Tropa de Elite”


Assisti a “Tropa de Elite” atendendo a convite generoso da secretária estadual de Cultura, Adriana Rattes, na abertura do Festival de Cinema do Rio. No caso, esse inusitado preâmbulo faz-se necessário para me isentar da suspeição de ter visto o filme nos escaninhos da abjeta pirataria. Feita a ressalva, ao filme, pois.
Há várias maneiras de se ver “Tropa de Elite”. Como não sou crítico de cinema, de nada, nem de ninguém, interessam-me mais os aspectos políticos e o ambiente sociológico de segurança e de violência que o filme reflete do que propriamente a obra.
Como filme, “Tropa de Elite” não é nenhuma Brastemp. Nos mesmos moldes, por exemplo, cinematograficamente falando, “Cidade de Deus” é bem melhor, mais consistente e criativo. Mostra melhor o que revela.
Já “Tropa de Elite”, em minha desqualificada visão cinematográfica, perde-se em subtramas pouco densas, ora para enfatizar o infernal embrutecimento do personagem principal mesmo em domínio doméstico, ora para generalizar a podridão que retrata. Na ânsia de culpar igualmente a sociedade perfumada, o aparato policial, os políticos sem escrúpulo e a bandidagem ensandecida, “Tropa de Elite” abusa de soluções generalistas e simplistas. Se fosse um filme americano sobre a SWAT, provavelmente seria depreciado.
Não li o livro “Elite da Tropa” que originou o filme. Disse-me, porém, o ex-capitão do BOPE, Rodrigo Pimentel, co-autor do livro e do roteiro do filme, que ambos são bem diferentes. Considerando-se, entretanto, que livro e filme, embora fantasiosos, tenham um grande embasamento na realidade, podemos observar a situação espelhada como gravíssima e preocupante. Não por apresentar uma novidade; mas, sim, pela dimensão.
Sobre a superfície do universo criminal há farto material ficcional e respaldo cotidiano nas ruas e na mídia. Já as mazelas da polícia, mesmo que também ricamente documentada, não deixam de causar perplexidade no filme. O que tem de mais virtuoso em “Tropa de Elite” é a crua exposição das entranhas de um importante corpo de segurança.
A rigor, lato sensu, a polícia se divide entre corruptos, ladrões, assassinos, torturadores etc. Ou seja, não há mocinhos, não há agentes públicos agindo dentro da lei. No filme, os supostos mocinhos são os policiais boçais que torturam e matam, em contraponto aos policiais que se corrompem, roubam e achacam uma sociedade conivente com o tráfico de drogas, mas que espia sua culpa social, caricaturalmente, com florais assistencialistas.
É certo que tanto na sociedade quanto nos engenhos policiais há gente de outra estirpe. Não há como deixar de imaginar, entretanto, que o quadro real policialesco seja assemelhado ao narrado no filme. Ou pior. Se assim consideramos e se assim é, será que temos soluções realísticas para os problemas? Ou a sociedade e os poderes públicos perderam definitivamente as condições de cuidar dessa moléstia?
O mérito de “Tropa de Elite” não é provar que o cinema nacional evoluiu e há muito equacionou a qualidade de som dos seus filmes. O mérito de “Tropa de Elite” é ensejar uma discussão sobre a natureza das nossas polícias e os papéis que elas têm que cumprir e sob que regras. E isso não pode mais tardar.

Hudson Carvalho

30.9.07

Quase

Um poema do livro "Guardar":

QUASE

Por uma estranha alquimia
(você e outros elementos)
quase fui feliz um dia.
Não tinha nem fundamento.
Havia só a magia
dos seus aparecimentos
e a música que eu ouvia
e um perfume no vento.
Quase fui feliz um dia.
Lembrar é quase promessa,
é quase quase alegria.
Quase fui feliz à beça
mas você só me dizia:
“Meu amor, vem cá, sai dessa”.


De: CICERO, Antonio. Guardar. Rio de Janeiro: Record, 1996, p.69.

29.9.07

Eduardo Giannetti: Palácio subjetivo aflora no carnaval

É inesquecível o seguinte artigo do Eduardo Giannetti:


Palácio subjetivo aflora no carnaval

Esqueço rapidamente quase tudo a que assisto no cinema e TV. Em alguns casos, chego ao extremo de nem lembrar se já teria visto ou não algum filme ou programa a que esteja assistindo. É uma experiência inconfortável de perda de registro e que se torna esmagadora quando me acontece de encontrar alguém que resolve contar de forma minuciosa, sadicamente detalhista, algo que tenha visto tempos atrás. A sensação que fica é a de que padeço de algum tipo de amnésia aguda localizada.
Mas nem tudo, felizmente, desaparece sem vestígio no ralo da memória. Foi o que pude constatar com certo alívio, num quarto de hotel em Teresina, enquanto assistia ao especial sobre o Brasil (The giant awakens) exibido pela rede CNN há poucos dias [fevereiro de 98].
O programa dividiu-se em blocos didáticos e previsíveis. Primeiro, a situação econômica do país e as nossas mazelas e iniqüidades sociais; depois, um passeio pela floresta amazônica entremeado de alertas sobre a devastação ecológica; e, por fim, um apanhado de manifestações da cultura popular: estádios de futebol vibrantes, grupos jovens de percussão, praias apinhadas de hedonistas e os preparativos do carnaval. A última cena exibia uma menina pobre, de três ou quatro anos de idade, ensaiando feliz da vida e cheia de graça os seus primeiros passos de samba ao som de um tamborim.
O especial da CNN não trouxe novidades. Foi um programa correto, suficiente para embalar o tédio e preencher a janela na grade horária, mas essencialmente rotineiro e descartável. Um programa, em suma, fadado ao esquecimento quase instantâneo e que eu mal conseguiria lembrar de haver algum dia assistido, não fosse pelo fato de que ele acabou me despertando para lembranças que nem eu me sabia capaz de recordar.
A imagem da menina pobre sambando e o contraste implícito entre esta cena e o quadro de miséria exibido na parte inicial do programa reavivaram em minha memória as imagens de um outro documentário sobre o Brasil visto de fora — um trabalho de jornalismo que, este sim, eu não hesitaria em destacar como uma das peças mais surpreendentes e reveladoras feitas até hoje por uma TV estrangeira sobre a nossa realidade.
No início dos anos 80, uma equipe da BBC inglesa veio ao Brasil gravar um documentário sobre as condições de vida numa favela do Rio. A idéia era mostrar de forma ultra-realista, no melhor estilo "câmara invisível" da tradição anglo-saxônica de reportagem, um dia na vida de uma jovem favelada carioca. A equipe subiu o morro, escolheu a protagonista e passou a registrar o cotidiano de vida, trabalho e lazer daquela jovem. O resultado, exibido em horário nobre na BBC-2 (eu estava morando na Inglaterra quando passou), foi um documentário deliciosamente incongruente e que acabou fugindo por completo do controle de seus idealizadores.
A intenção do programa era claramente explorar ao máximo as chagas abertas e a penúria do dia-a-dia na favela: a imundície e a promiscuidade dos barracos, a dieta sofrível, a falta de água encanada, o dinheiro curto, o tempo perdido no transporte público, o subemprego, enfim, as condições absurdamente precárias da vida no morro. Tudo isso a equipe da BBC foi até lá buscar e encontrou. O que eles não podiam esperar, mas as câmaras e microfones testemunharam, era que a jovem moradora daquele barraco objetivo habitasse um verdadeiro palácio subjetivo de alegria, esperança e fantasia.
Acontece que a jovem escolhida para servir de fio condutor do programa personificava a negação viva e radiante de toda a carga de sombra e amargura que o registro clínico de seu cotidiano nos fariam esperar dela. Em meio a toda precariedade de seu dia-a-dia humilde na favela, ela irradiava uma felicidade espontânea, uma satisfação íntima consigo mesma e uma libido exuberante que nós jamais conseguiríamos encontrar numa jovem inglesa de sua idade, não importando a classe social e mesmo no verão.
Embora tivesse razões de sobra para queixar-se do destino e viver na mais espessa melancolia, ela esbanjava joie de vivre por todos os poros e arrancava luz das trevas com a sua alegria interior. Recordo-me, em particular, da cena em que ela ia buscar água a certa distância de casa e, para desconcerto dos ingleses, voltava carregando a lata cheia e... cantando!
A seqüência — Paulo Prado e sua "raça triste" que me perdoe — era puro Gilberto Freyre: "Tanto nas plantações como dentro de casa, nos tanques de bater roupa, nas cozinhas, lavando roupa, enxugando prato, fazendo doce, pilando café; nas cidades, carregando sacos de açúcar, pianos, sofás de jacarandá — os negros trabalharam sempre cantando; seus cantos de trabalho, tanto quanto os de xangô, os de festa, os de ninar menino pequeno, encheram de alegria africana a vida brasileira. Às vezes de um pouco de banzo: mas principalmente de alegria."
A relação entre o barraco objetivo da favela e o palácio subjetivo da jovem dá o que pensar. Não se trata, ao que parece, de um caso isolado. Ele ilustra de forma magnífica os resultados obtidos pelo Datafolha em recente pesquisa sobre a felicidade dos brasileiros. Apesar de viver e ganhar a vida em condições precárias, a grande maioria dos brasileiros considera-se feliz e amplamente satisfeita com a vida que leva: só 3% se declaram infelizes em relação à sua vida como um todo.
É plausível supor, contudo, que tanto o documentário da BBC quanto a pesquisa do Datafolha tenham sofrido os efeitos daquilo que os físicos quânticos denominam princípio da incerteza, ou seja, a interferência deturpadora do ato de observar sobre a configuração do que foi observado.
Ao ser indagado sobre a sua felicidade, o entrevistado se defende perante si mesmo da ameaça de dor que uma resposta derrotista traria e declara-se sinceramente feliz. Ao ser escolhida, entre tantas outras, para "estrelar" um programa de TV a ser exibido no exterior, a jovem carioca sente-se a eleita dos deuses e embarca num mundo de fantasias mais espesso e luxuriante que a novela das oito.
Qualquer que seja a realidade, um ponto permanece. Mesmo que o palácio subjetivo dos brasileiros não passe de criatura do princípio da incerteza — algo que, diga-se de passagem, não me parece ser o caso —, a tenacidade da garra demonstrada em não entregar os pontos e o dom de embarcar vigorosamente nos sonhos e fantasias que nos povoam são traços culturais de inestimável valor.
A disposição alegre e afetiva do brasileiro, em meio a toda precariedade do seu mundo objetivo e material, parece buscar qualquer brecha ou pretexto que se ofereça para florescer. Todo dia é "dia do riso chorar". A "ofegante epidemia" do carnaval —esse espantoso vulcão de euforia coletiva com data marcada — aí está para não nos deixar mentir.

De: GIANNETTI, Eduardo. “Palácio subjetivo aflora no carnaval”. In: Nada é tudo. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p.63-66.

26.9.07

Antonio Carlos Secchin: Arte

Outro dia tive a grata surpresa de reler, no livro que Tatiane Martins lançou este mês, Poeme-se (Rio de Janeiro: Litteris Editora, 2007), um poema que Antonio Carlos Secchin dedicou a mim – dedicatória de que me muito me orgulho – no seu belo livro Todos os ventos. Ei-lo:

ARTE

a Antonio Cicero

Poemas são palavras e presságios,
pardais perdidos sem direito a ninho.
Poemas casam nuvens e favelas
e se escondem após no próprio umbigo.
Poemas são tilápias e besouros,
ar e água à beira de anzóis e riscos.
São begônias e petúnias,
isopor ou mármore nas colunas,
rosas decepadas pelas hélices
de vôos amarrados ao chão.
Resto do que foi orvalho,
poema é carta fora do baralho,
milharal virando cinza
pelo fogo do espantalho.

De: SECCHIN, Antonio Carlos. Todos os ventos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.

23.9.07

O Senado e a democracia

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Ilustrada da Folha de São Paulo sábado, 22 de setembro de 2007:


O Senado e a democracia


EMBORA tenha sido deplorável a absolvição do senador Renan Calheiros, também são lastimáveis algumas das reações a esse episódio.
Readquiriu força, por exemplo, a idéia, que havia sido proposta no começo do mês pelo presidente do PT, de extinguir o Senado.
Como não pensar em maquiavelismo, à simples descrição do ocorrido? A opinião pública informada pressionava pela condenação de Renan; este não teria sido absolvido sem o beneplácito do presidente Lula; ora, sua absolvição desmoralizou grande parte dos senadores e revigorou, justamente junto à opinião pública informada, a idéia da extinção do Senado; com isso, o Poder Executivo -o presidente Lula- ficou ainda mais forte em relação ao Poder Legislativo.
Nessas circunstâncias, é imperativo que os brasileiros que defendam uma sociedade aberta e democrática conservem o sangue-frio. Devemos resistir à tentativa açodada de convocar uma assembléia constituinte que tenha o objetivo precípuo de dar fim ao sistema bicameral.
Lembremo-nos, por exemplo, que, num país de imensas desigualdades regionais, como o Brasil, um fator importante da unidade nacional é que haja uma Câmara -o Senado- em que todos os Estados da federação tenham o mesmo peso.
Assim como a desmoralização do presidente Collor não significou a desmoralização da instituição da Presidência da República, a desmoralização de vários senadores, no episódio Renan, não pode significar a desmoralização da instituição do Senado.
De todo modo, nada seria pior, neste momento, do que contribuir para desestabilizar o Congresso, de modo a perpetuar ou acentuar o presente desequilíbrio entre os poderes da República.
E, por falar em desestabilizar o Congresso, não será surpreendente se a atual desilusão generalizada, lançando suspeição contra a própria noção de representação política, traga novamente à baila a idéia de "democracia direta".
Esta se manifestaria pelo plebiscito, pelo referendo e pela iniciativa popular. Entretanto, o próprio Fábio Konder Comparato, que é, no Brasil, o grande defensor da "democracia direta", reconhece, por exemplo, que as leis raciais de Hitler foram aprovadas por mais de 90% do povo. Alguém duvida que as ditaduras sanguinárias de Hitler, Stálin, Mao Tse-tung e Pol Pot tenham tido o apoio da maioria da população dos respectivos países?
Sugiro, em relação a essa questão da "democracia direta", a leitura do livro recém-lançado do cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, "O Paradoxo de Rousseau" (ed. Rocco, 2007, 166 pág., R$ 25).
Ele lembra, por exemplo, que, ao contrário do que ocorre nos Parlamentos, cujas decisões estão sujeitas a serem reconsideradas -pelo próprio Parlamento ou por outras instâncias- "não há como recorrer de decisões plebiscitárias. Os perdedores em tais decisões são perdedores absolutos".
Tudo se passa como se os plebiscitos "fossem a expressão da vontade geral unânime, quando pode ocorrer, inclusive, que não correspondam senão a maiorias obtidas por mínima margem de diferença".
O resultado, segundo o mesmo cientista político, é que "uma sucessão de escolhas plebiscitárias daria lugar à constituição de um contingente de cidadãos condenados ao silêncio por tempo indeterminado. Na verdade, o mecanismo se converteria em uma fábrica de ostracismo ideológico". E assim -agora sou eu que o digo- revela-se a verdade da "democracia direta" como a ditadura plebiscitária.
É para evitar semelhantes desastres que devemos fazer o máximo para preservar as instituições da República. Não nos enganemos: a existência delas ainda é precária.
Enquanto, por um lado, grande parte da direita odeia a sociedade aberta, por outro lado, grande parte da esquerda -principalmente da marxista- a despreza. Seria de esperar que, após a revelação dos massacres, das atrocidades e da repressão ocorridos na União Soviética, na China, no Camboja, em Cuba etc., os marxistas, antes de fazer qualquer outra proposta política, se propusessem a preservar e defender, de modo incondicional, a sociedade aberta, o Estado de Direito, os direitos humanos, a liberdade de expressão, a autonomia da ciência, a autonomia da arte etc. É lamentável que não seja assim.


Antonio Cicero

21.9.07

Nelson Ascher: Mais dia menos dia

MAIS DIA MENOS DIA

Coágulos de perda
de tempo, adiamento,
atraso e espera, ou seja,
minúsculas metástases

de caos se interpõem entre
— irrelevante qual
dos dois corre na frente —
a tartaruga e Aquiles

(o débito na conta;
no trânsito, a demora;
um ácido no estômago;
frente ao correio, a fila;

o mofo no tecido;
nos músculos, a inércia;
cupins na biblioteca;
sob o tapete, o lixo;

um óxido no ferro;
nas pálpebras, o sono)
e, como que aderindo,
à guisa de entropia,

ao âmago dos nervos,
embotam mais um pouco
o ritmo do arraigado
relógio biológico.


De: ASCHER, Nelson. Algo de sol. São Paulo: Editora 34, 1996, p.51-52.

18.9.07

Bienal do Livro

Hoje às 16 horas, no Pavilhão Verde da Bienal do Livro, no café literário "Amigos para sempre", falarei sobre o meu saudoso amigo Waly Salomão.


Mais tarde, às 20 horas, no mesmo pavilhão, terá lugar outro café literário, em que a maravilhosa escritora que é a minha amiga Márcia Frazão conversará com a Bruna Surfistinha e a Gisela Rao sobre "Liberdade ou libertinagem".

15.9.07

Salvatore Quasimodo: "Ed è subito sera" / "E de repente é noite": trad. de Geraldo Holanda Cavalcanti




Ed è subito sera

Ognuno sta solo sul cuor della terra
trafitto da um raggio di sole:
ed è súbito sera.


E de repente é noite

Cada um está só no coração da terra
traspassado por um raio de sol:
e de repente é noite.


De: QUASIMODO, Salvatore. Poesias. Edição bilíngüe. Seleção, tradução e notas de CAVALCANTI, Geraldo Holanda. Prefácio de Luciana Stegagno Picchio. Rio de Janeiro: Record, 1999. P. 18-19.

12.9.07

Juan Ramón Jiménez: Yo no soy yo

Yo no soy yo.
Soy este
que va a mi lado sin yo verlo;
que, a veces, voy a ver,
y que, a veces, olvido.
El que calla, sereno, cuando hablo,
el que perdona, dulce, cuando ódio,
el que pasea por donde no estoy,
el que quedará en pie cuando yo muera.



De: Segunda antología poética: 1898-1918. Madrid: Espasa-Calpe, 1976.

9.9.07

Os Babilaques de Waly Salomão

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Folha de São Paulo em 8/9/2007 :

Os Babilaques de Waly Salomão

CADA UM dos Babilaques de Waly Salomão que estão sendo expostos no espaço Oi Futuro, no Rio de Janeiro, sob a curadoria de Luciano Figueiredo, consiste numa fotografia de uma página de um caderno em espiral, ao lado de diferentes objetos e sobre diferentes superfícies: asfalto, grama, pedra, roupas, outros cadernos etc. Na página, encontram-se desenhos e/ou colagens e/ou letras, palavras, versos, textos em manuscrito etc.
Ao mesmo tempo que descrevia os Babilaques como "performances-poético-visuais", Waly advertia que "evitaria designá-los simplesmente como poemas visuais, já que essa designação é desatenta à somatória de linguagens".
De fato, o que chamamos de "poesia visual" é, naturalmente, uma espécie de poesia. No Ocidente, ela possui uma tradição que remonta à Antiguidade e passa pelo dadaísmo, pelo futurismo, pela poesia concreta etc., até os nossos dias.
Quando digo que a poesia visual é uma espécie de poesia, estou supondo que uma arte chamada "poesia" seja o gênero ao qual pertença a "poesia visual". Isso, porém, supõe, por sua vez, que esse gênero seja, ele mesmo, uma das espécies do gênero que chamamos "arte", ao qual pertencem também outras espécies, como a música, a pintura etc.
Penso que corresponde à intenção mais profunda de Waly dizer que os Babilaques não só não se reduzem à poesia visual mas que não se reduzem a nenhuma dessas espécies de arte: nem mesmo à poesia, quando esta é tomada como uma espécie de arte entre outras.
Longe de aceitar esse modo convencional de classificar a poesia, Waly considera as diferentes artes como diferentes técnicas por meio das quais a poesia é capaz de se realizar. Por isso, seu poema "Exterior" pergunta, por exemplo: "Por que a poesia tem que se confinar/ às paredes da vulva do poema?".
Waly sublinha o caráter inter-relacional dos "textos, objetos, luzes, planos, imagens, cores, superfícies" que se encontram nos Babilaques. Trata-se, segundo ele, de uma "multilinguagem". Não se empreende com essas obras uma busca meramente pictórica, pois a linguagem verbal funciona como "o agente que hibridiza todo o campo sensorial da experiência". Nesse sentido, os Babilaques constituem a radicalização de um programa poético -articulado e realizado de diferentes modos, em diferentes momentos da trajetória de Waly- voltado para o hibridismo e a "polinização cruzada".
Um texto dele com esse nome diz: "Polinizações cruzadas entre o lido e o vivido. Entre a espontaneidade coloquial e o estranhamento pensado. Entre a confissão e o jogo. Entre o vivenciado e o inventado. Entre o propósito e o instinto. Entre a demiúrgica lábia e as camadas, superpostas do refletido. Imbróglio d'álgebra e jogo de azar".
"Uma foto de um pedaço de fruta dentro de uma lata vazia", explica Waly, "não pretende ser uma forma insólita de "natureza morta", mas instaura um discurso, uma fala, um canto, uma música, cines imaginários". Há uma série de Babilaques, intitulada "Amalgâmicas", que correspondem a essa descrição.
"Q a primeira única vez volte a se fazer PRESENÇA", diz o poema "Nota de Cabeça de Página". Assim quer ser o Babilaque: "A composição enquanto presença dalguma coisa". A presença surge "dentro da composição através dela pela primeira única vez", quando, numa performance poética, o artista põe ou surpreende, por exemplo, tal pedaço de fruta dentro de tal lata vazia. E "a fotografia", dizia Waly, "com seus elementos composicionais próprios: luz, cor, ângulo, corte-transforma e fixa a performance poética".
Observe-se nesses textos a insistência da palavra "composição" e cognatas. Uma característica impressionante dos Babilaques -que, aliás, os distingue de quase toda "poesia verbal", conferindo-lhes uma qualidade propriamente plástica- é exatamente a sua composição sempre surpreendente e precisa.
A meu ver, a combinação dessa realização visual com a expressão cabal da vocação walyniana para "[...] transbordar, pintar e bordar, romper as amarras / soltar-se das margens, desbordar, ultrapassar as / bordas, transmudar-se, não restar sendo si-mesmo, / virar ou-tros seres [...]" é uma das principais propriedades que tornam os Babilaques admiráveis obras de arte.
Finalmente, cabe sublinhar a extraordinária sensibilidade, não digo do curador, mas do artista Luciano Figueiredo, ao conceber a dinâmica planar que lhe permitiu, expondo os Babilaques na parede, realçar maximamente as suas qualidades plástico-poéticas.


Antonio Cicero

8.9.07

Fernando Gabeira: Duelo ao entardecer

O seguinte artigo de Fernando Gabeira foi publicado hoje, sábado, 8 de setembro de 2007, na Folha de São Paulo. Considero-o extremamente importante.


Duelo ao entardecer

DE UM PONTO de vista simbólico, quarta-feira alguém irá morrer: ou o Senado ou Renan Calheiros. O resultado ainda é imprevisível. Dizem que o governo salvará seu "enfant gaté". O ministro da Defesa, que é um elefante na cristaleira, mas celebrado pelos escribas deslumbrados, foi visitar Renan e levar-lhe solidariedade.
Trabalho com a hipótese de o governo salvar Renan. Não a prefiro, mas já me acostumei com a realidade que desafia o bom senso. Se isso acontecer, a batalha não estará perdida. Abre-se apenas uma nova fase, bem ao gosto dos opositores que desejam o pior. Uma fase do tipo os deuses enlouquecendo aqueles a quem desejam destruir.
Certas cabeças, se é que podemos chamá-las assim, do governo podem pensar: danem-se a classe média e todos os indivíduos instruídos do país, a elite. Acomodem-se os pobres, porque, afinal, estão recebendo seu quinhão de Bolsa Família e não têm nada que opinar sobre Renan. Faremos o que quisermos, não importam as conseqüências.
A hipótese de absolvição de Renan com a ajuda do governo trará sobressaltos, possibilidades imprevistas. Lula colocou o PT acima da ética. Ele pode afirmar também que ninguém é mais ético que Renan, pois o senador uniu-se umbelicalmente ao projeto do PT. Ou pode dizer também que ninguém sabe o que aconteceu quando os fatos se desenrolarem.
Todos nos acostumamos com o desenrolar pacífico da democracia brasileira. Mas o surgimento de uma aliança de quadrilhas, encarando o país com um cinismo revoltante, é um dado perigoso. Vamos rezar pelo bom senso. Vamos trabalhar por ele. Mas, caso a loucura onipotente predomine, os brasileiros terão de admitir que a história não é um piquenique. Ou serão devorados como um sanduíche e bebidos como uma tubaína de Alagoas.
Indivíduos fizeram sua escolha.
Lobão, por exemplo, foi ao Congresso com uma camiseta que explicava, com humor, o momento em que vivemos: peidei, mas não fui eu. Tico Santa Cruz acampou na frente do Senado e desenhou uma bandeira do Brasil com laranjas.
Artistas, diriam, têm suas prerrogativas. Nem todos são artistas, nem todos podem viajar a Brasília.
Apesar da patética fragilidade diante da história, só os indivíduos, no momento de torpor coletivo, podem encarnar a esperança.
Os que se calam hoje, com medo de fazer o jogo da direita, deveriam consultar a história, capítulo Stálin. Os momentos de cumplicidade com o crime são doces e suaves. A vergonha vem depois.

Fernando Gabeira

2.9.07

Inês Pedrosa: "Eduardo"

Sábado, 25 de agosto, faleceu um dos intelectuais mais brilhantes do nosso tempo: o português Eduardo Prado Coelho. Leio com admiração os seus textos desde quando eu estudava no Instituto de Filosofia da UFRJ. Em fevereiro do ano passado, tive o prazer e o privilégio de conhecê-lo e de conversar longamente com ele em Portugal, nas Correntes d’Escritas de Póvoa de Varzim, em Portugal. Publico a seguir a belíssima crônica que a escritora Inês Pedrosa lhe dedicou em sua coluna do jornal Expresso, ontem, sábado, 1 de setembro:


Eduardo

Sobre o teu caixão, um girassol aberto. Disseram-me que o gesto veio da Teresa Belo – tu terás sorrido, e o Ruy Belo floriu contigo nesse sorriso, estendendo-te a mão. Uma das tuas heranças são as amigas, várias, escolhidas a dedo – em geral, mulheres fortes, radiosas como girassóis, com as quais conversavas infinitamente de tudo e de nada. Mulheres que riem. No fundo, invejavam-te tanto esse dom de gerar e manter amizades longas com mulheres como os outros todos – a erudição, a inteligência plástica, a escrita iluminante, o sentido de humor, o prazer de viver, a capacidade de organização, a liberdade da palavra, a visibilidade. E invejavam-te descaradamente o dom da paixão retribuída, que possuías em alto grau. Uma vez, um escritor perguntou-te: «Como é que você faz para ter tanto sucesso com as mulheres quando eu, que sou um homem bonito, não consigo ter nem metade?» Ter-lhe-ás respondido, segundo me contaste: « Não sei, é de facto estranho. O melhor será perguntar-lhes a elas». Fulminante, com uma gargalhada elegantíssima. Também isso te perdoavam pouco: a gargalhada, a elegância.
As mulheres gostavam de conversar contigo porque tu sabias dançar de tema para tema, misturar o sério e o risível, o sublime e o quotidiano. Os homens ainda não são educados para deslizar assim entre os diversos níveis da existência. Tinhas uma curiosidade insaciável e genuinamente democrática: tudo te interessava. Transitavas entre pessoas e artes sem preconceitos de espécie nenhuma – estavas sempre disponível para a alegria da descoberta e do encantamento. Revelaste e estimulaste muitíssimos talentos, sem nunca adoptares a pose tutelar do pai ou do padrinho latino – antes pelo contrário, entregavas-te ao prazer de admirar, que é uma jóia rara, no nosso Portugal de hierarquias, vénias e trocas de favores.
Uma figura grada convocou-te certa vez para um encontro à chuva, e, depois de te deixar marinar bastante no meio de uma praça, lá veio dizer ao que vinha: queria que tu mexesses uns cordelinhos para que lhe atribuíssem um Prémio prestigiado e chorudo. Respondeste que nem membro do júri eras, mas a figura insistia que o teu poder de influência resolveria isso. Eu pasmava com a tua bonomia diante destes assaltos permanentes. Porque continuavas a disponibilizar a mesma atenção – nem mais, nem menos – para o trabalho das múltiplas pessoas que te tentavam usar como SOS-Promoção. Eras generoso a fundo perdido, e fazias disso a tua riqueza: o que vivias, o que conhecias, o que aprendias. Pessoalmente, invejava-te sobretudo a capacidade de esquecer as ofensas. «Não é que perdoe, é que esqueço genuinamente. Não tenho arquivo para as coisas más, o que é que eu hei-de fazer?». E tornavas a rir. Era esse talento para o esquecimento o que te impedia de envelhecer. Dizia Manuel Alberto Valente ao «Público», na bela e dolorosa edição que esse teu jornal de sempre te dedicou, que foste o grande intelectual da geração dele. O pior é que eu olho para a geração seguinte, a minha geração, e também não vejo ninguém como tu, capaz de fazer a ponte entre a universidade, as artes (todas as artes) e a vida, capaz de dar o corpo pelas causas (recordo-te muito doente, no Inverno passado, numa tarde gelada, no Rossio, recolhendo assinaturas para o movimento de cidadãos em prol da interrupção voluntária da gravidez), capaz de estar em tudo, e tão intensamente, como tu. Sendo simultaneamente, como tu eras, como tu és – porque os textos não morrem – um cintilante escritor.
Várias vezes me pareceu que aquilo que escrevias sobre obras alheias era melhor do que a obra em si. E tu, modestamente, incentivavas-me a que olhasse outra vez. Eu olhava – e, se nem sempre consegui gostar do que tu gostavas, consegui pelo menos descobrir novas dimensões e estímulos nas tuas razões. Tinhas um cânone estético bem definido, mas de forma alguma estanque – pouco te perdoavam, aliás, uma coisa e outra. E tu, nas tintas. A frontalidade foi o único traço que senti alterar-se em ti, com o tempo – em particular nos últimos anos: como se a ronda da morte te levasse a escolher palavras cada vez mais directas e límpidas. Essa liberdade paga-se, claro –há pouco tempo telefonaras-me perguntando se não me importaria de a ir ao tribunal atestar do teu bom carácter.
Creio que essa liberdade indomável te terá vedado o acesso a cargos que terias servido na perfeição – ocorrem-me vários, desde Ministro da Cultura a director de programas da RTP. As tuas incessantes ideias e o teu modo comunicante de viver teriam sido muito úteis ao país – os dez anos em que foste conselheiro cultural em Paris marcaram uma projecção exponencial da cultura portuguesa em França.
Consola-me saber que não sofreste. Que apenas adormeceste, ao lado da mulher que amavas, depois de mais um dia feliz. Sem incomodar ninguém – como era teu timbre. Se me pedissem uma definição humana para a suavidade, eu dizia o teu nome. Eduardo Prado Coelho. E continuarei a evocar o teu riso, as tuas palavras, o teu exemplo, como se rodasse um inesgotável girassol.

Inês Pedrosa