29.7.07

Bibliografia do curso "A arte do poeta"

SOBRE POÉTICA E CRÍTICA:


ARISTÓTELES. Poética. Trad. E. de Sousa. Porto Alegre: Globo, 1966.

ASCHER, Nelson. Poesia alheia. Rio de Janeiro: Imago, 1998.

AUDEN, W. Fazer, saber e julgar. Trad. de Ângela Melim. Ilha de Santa Catarina: Noa Noa, 1981.

BERARDINELLI, A. Da poesia à prosa. Trad. de M.S. Dias. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

BLANCHOT, M. O espaço literário. Trad. A. Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.

BOILEAU, N. Arte poética. Ed. bilingue. Trad. Conce de Ericeira. Prefácio e notas de J.P. Machado. Lisboa: Fernandes, 1950.

CABRAL de Melo Neto, J. "Poesia e composição". In: _____. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. p.721-37.

CICERO, Antonio. Finalidades sem fim. Ensaios sobre poesia e arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

ELIOT, T.S. “A tradição e o talento individual”. In: Ensaios de doutrina crítica. Lisboa: Guimarães, 1962.

HORÁCIO. Arte poética. Lisboa: Inquérito, 1984.

PESSOA, F. "Nota preliminar às Odes de Ricardo Reis". Apontamento solto de Álvaro de Campos. In: _____. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1969. p.251-96.

PESSOA, F. "Nota preliminar às Poesias de Álvaro de Campos". Apontamento solto de Ricardo Reis. In: _____. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1969. p.297-423.

PIGNATARI, Décio. O que é a comunicação poética. São Paulo: Brasiliense, 1991.

POUND, E. ABC da literatura. Trad. de A. de Campos e J.P. Paes. São Paulo: Cultrix, 2001.

SCHILLER, Friedrich von. A educação estética do homem. Trad. de M. Suzuki e R. Schwartz. São Paulo: Iluminuras, 1995.

SCHLEGEL, Friedrich. Conversa sobre poesia e outros fragmentos. Trad. V.P. Stirnimann. São Paulo: Iluminuras, 1994.

SHELLEY, P.B. Defesa da poesia. Lisboa: Guimarães Editores, 1986.

VALÉRY, P. Variedades. Trad. de M.M. de Siqueira. São Paulo: Iluminuras, 1991.



SOBRE VERSIFICAÇÃO:


BANDEIRA, Manuel. “A versificação em língua portuguesa”. In: GUIMARÃES, Júlio (org.). _____. Seleta de prosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

MATTOSO, Glauco. “Apêndice”. In: Geléia de rococó. São Paulo: Ciência do Acidente, 1999).


SOBRE LETRA DE CANÇÃO:


CICERO, A. "Letra de música". Cultura Brasileira Contemporânea, vol.1, n.1, p.7-15, Rio de Janeiro, Novembro, 2006.

CAMPOS, A.d. "Boa palavra sobre a música popular". In: Balanço da bossa e outras bossas. 3ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1978. p.59-65.

TATIT, L. O cancionista. Composição de canções no Brasil. São Paulo: Edusp, 1996.

28.7.07

Barbárie e civilização

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da “Ilustrada” da Folha de São Paulo sábado, 28 de julho de 2007:





ANTONIO CICERO

Barbárie e civilização
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O civilizado é aquele que reconhece que as convicções de qualquer cultura são falíveis
________________________________________


"O BÁRBARO é, em primeiro lugar, o homem que crê na barbárie." Essa é uma das mais famosas proposições que se encontram na brochura "Raça e História", escrita por Lévi-Strauss na década de 1950, por encomenda da Unesco.
Dado que, no contexto em que ela foi enunciada, as palavras "bárbaro" e "barbárie" têm um sentido pejorativo, trata-se de uma proposição paradoxal, pois, evidentemente, aquele que a enuncia crê na barbárie do homem que crê na barbárie: o que significa que ele está a chamar a si próprio de "bárbaro".
É obviamente improvável que Lévi-Strauss tencionasse qualificar-se de bárbaro. Por um lado, a frase citada pode ser tida como uma mera "boutade", cujo sentido real, puramente negativo, seja justamente o de desmoralizar a própria noção excessivamente valorativa -melhor dizendo, pejorativa- de "barbárie".
Por outro lado, ela parece ter a intenção positiva de afirmar que o verdadeiro bárbaro é aquele que não considera plenamente humano o membro de uma cultura diferente da sua; aquele que pura e simplesmente repudia as formas culturais, isto é, as formas morais, religiosas, sociais, estéticas, que sejam distantes das formas com as quais se identifica; aquele, isto é, que julga as formas das demais culturas segundo os critérios da cultura a que pertence; aquele, portanto, que a etnologia classifica de "etnocentrista".
Sendo assim, o civilizado é aquele que não julga as formas das demais culturas segundo os critérios da cultura à qual ele pertence. Que significa isso, na prática?
Três possibilidades se apresentam. A primeira é que o civilizado seja aquele que julgue as formas das demais culturas segundo critérios de uma cultura à qual não pertença.
É evidente, porém, que tal pessoa não deixaria de ser etnocêntrica, tendo meramente posto uma cultura adotada no lugar da sua cultura nativa. Ela continuaria, portanto, a ser bárbara.
A segunda possibilidade é que o civilizado seja aquele que simplesmente não julga as formas das culturas às quais não pertença. Ao invés de ser uma solução, porém, isso seria um problema.
Digamos, por exemplo, que eu, que acredito em direitos humanos, soubesse que uma mulher vai ser lapidada por ser adúltera. Nesse caso, eu certamente me revoltaria contra tal ato, a menos que julgasse que as pessoas em questão, não pertencendo à minha cultura, não eram propriamente humanas. Esta última hipótese, porém, seria exatamente o cúmulo da barbárie.
A única possibilidade que resta é que o civilizado seja aquele que julga as formas das demais culturas segundo critérios que não pertençam a nenhuma cultura particular: nem mesmo à sua cultura de origem.
Se isso for possível, o etnocentrismo é superado, não apenas no sentido convencional do termo mas também no sentido de que, para o indivíduo, a sua própria cultura deixa de ser absolutamente central: e talvez a vitória sobre este etnocentrismo seja uma condição necessária para a vitória sobre o etnocentrismo no sentido convencional.
Ora, tal distanciamento em relação à própria cultura a que se pertence é evidentemente possível, já que se dá na realidade.
Ele ocorre cada vez que alguém critica uma manifestação da sua própria cultura. O distanciamento crítico é produzido pela razão que, longe de pertencer a qualquer cultura particular, é universal, uma vez que é, em princípio, acessível a qualquer ser humano.
Assim, o civilizado é aquele que reconhece que as convicções mais fundamentais -filosóficas, éticas, estéticas, religiosas etc.- de qualquer cultura, inclusive da sua, são falíveis. Ele reconhece que há muitas diferentes crenças no mundo, e que elas freqüentemente se contradizem: logo, que nem todas podem ser verdadeiras, e que é possível até que nenhuma delas o seja.
A razão crítica através da qual ele reconhece isso não é uma crença como as outras.
Ela é 1) a capacidade de pôr em dúvida todas as crenças; 2) a certeza lógica de que qualquer crença pode ser falsa e 3) a conseqüente certeza de que a afirmação de que uma crença determinada não possa ser falsa é logicamente falsa.
Essa razão crítica é infalível porque, identificando-se com a própria capacidade de duvidar, afirma-se no próprio ato de duvidar de si. É a partir desse infalível princípio falibilista -e não a partir de crença alguma- que se constitui a civilização.

24.7.07

Manuel Bandeira: O Rio

Uma obra-prima de Bandeira:


O RIO

Ser como o rio que deflui
Silencioso dentro da noite.
Não temer as trevas da noite.
Se há estrelas no céu, refleti-las
E se os céus se pejam de nuvens,
Como o rio as nuvens são água,
Refleti-las também sem mágoa
Nas profundidades tranqüilas.

21.7.07

Comunidade e sociedade

Publico a seguir, com uma leve adaptação, uma seção do meu livro O mundo desde o fim:


§ 27: Gemeinschaft e Gesellschaft

Uma das mais importantes dicotomias sociológicas, estabelecida pelo sociólogo alemão Ferdinand Tönnies, é a que separa a Gemeinschaft, que podemos descrever como a comunidade fechada, e a Gesellschaft, que podemos descrever como a sociedade aberta. Doravante, usarei a palavra "sociedade" no lugar de Gesellschaft e "comunidade" no lugar de Gemeinschaft. Como se sabe, esta última consiste na associação em que se encontra uma espécie de "vontade natural", baseada numa articulação orgânica de seus membros. Tönnies dizia que na comunidade tende a predominar o sentimento de co-pertinência (Zusammengehörigkeitsgefühl), na base de uma concordância espontânea de pontos de vista, interesses e finalidades. Na sociedade, por outro lado, predomina a "vontade racional" ou o cálculo, baseado na mera agregação mecânica de seus membros. Entre os partícipes da sociedade, tendem a generalizar-se as relações competitivas ou contratuais, cada qual mantendo, à parte determinadas convenções explícitas, os seus próprio pontos de vista, interesses e finalidades. É costumário contrastar-se o individualismo típico da sociedade à solidariedade típica da comunidade. Tönnies não conseguia esconder sua simpatia pela última, e o próprio surgimento da sociologia pode ser entendido como uma crítica às pretensões iluministas a explicar a coletividade humana, inclusive a comunidade, a partir do contrato social, isto é, de uma categoria própria à sociedade, quando se supunha que na verdade esta deve ser tomada como derivada em relação àquela.


Tanto Max Weber em A Cidade quanto Marx e Engels em A Ideologia Alemã mostram que mesmo a cidade medieval já surge como uma espécie de sociedade. Pode dizer-se que a cidade é o berço da sociedade e, conseqüentemente, do declínio da comunidade. Se a grande família é o arquétipo da comunidade, a grande cidade é o arquétipo da sociedade. Conhece-se não só a nostalgia da comunidade do passado, mas também a nostalgia da comunidade do futuro, como a de Aragon:

“Ici j'ai tant rêvé marchant de l'avenir
Qu'il me semblait parfois de lui me souvenir.”
“[Aqui tanto sonhei, andando, com o futuro que parecia às vezes dele me lembrar]”

Não é à toa que a palavra "comunismo" é cognata de "comunidade". Esquemáticamente, a história é concebida por Marx e Engels como uma passagem da comunidade primitiva para a sociedade de classes e desta para a síntese comunista, que é a restauração da comunidade sobre a base material proporcionada pela sociedade. O horror ao individualismo burguês (a palavra vem de burgo, cidade) é o mesmo tanto em quem é nostálgico do passado quanto em quem é nostálgico do futuro. Na verdade, o verdadeiro objeto da nostalgia de ambos é a grande família.


Pode portanto dizer-se que é impossível apreciar a grande cidade sem apreciar ao menos algumas das qualidades associadas à sociedade, entre as quais o individualismo, as relações contratuais e impessoais, o grande mercado, o descaso pela tradição, a valorização das novidades, a secularidade, o cálculo etc. Para Tönnies, todos os valores geralmente tidos como positivos, tais como amor, lealdade, honra, amizade etc. são emanações da comunidade, que é a comunidade fechada. É sem dúvida isso que explica a ambivalência dos sentimentos dos admiradores das grandes cidades. Baudelaire é o protótipo deles quando, a propósito das gravuras de Méryon, fala da poesia e da solenidade natural de uma grande capital:

“As majestades da pedra acumulada, os campanários a apontar os dedos para o céu, os obeliscos da indústria a vomitar contra o firmamento suas coalições de fumaça, os prodigiosos andaimes dos monumentos em restauração, a aplicar sobre o corpo sólido da arquitetura sua arquitetura efêmera de uma beleza aracnídea e paradoxal, o céu brumoso, carregado de cólera e rancor, a profundidade das perspectivas aumentada pela lembrança dos dramas que contêm, nenhum dos elementos complexos de que se compõe o doloroso e glorioso décor da civilização é por elas esquecido”. [BAUDELAIRE, Ch. Oeuvres completes. Paris: Laffont, 1980, p.779.]

Se substituirmos os campanários por arranha-céus, poderemos pensar em Nova York ou São Paulo, no lugar de Paris. A majestade não é diminuida pela fumaça nem a solidez pela efemeridade nem o céu pela bruma carregada de cólera e rancor nem a glória pela dor: ao contrário, a profundidade das perspectivas é aumentada pela lembrança dos dramas que contém. Anuncia-se aqui a estética -- dramática e brumosa -- do sublime e do terrífico urbano, que se prolongaria até passar pelos Blade Runners de nossos dias.

Em A Condição da Classe Trabalhadora na Inglaterra, Engels diz sobre Londres:


“A multidão das ruas já tem, por si só, algo de repugnante, que revolta a natureza humana. Essas centenas de milhares de pessoas, de todas as condições e de todas as classes, que se apertam e se empurram, não são todas elas seres humanos, possuindo as mesmas qualidades e capacidades e o mesmo interesse na busca da felicidade? E não devem finalmente buscar essa felicidade pelos mesmos meios e procedimentos? E no entanto essas pessoas se cruzam correndo, como se nada tivessem em comum, nada a fazer juntas; e no entanto a única convenção entre elas é o acordo tácito segundo o qual cada um mantém a sua direita na calçada, afim de que as duas correntes de multidão que se cruzam não se empatem mutuamente; e no entanto, não vem à mente de ninguém conceder ao outro ao menos um olhar. Essa indiferença brutal, esse isolamento insensível de cada indivíduo no seio de seus interesses particulares são tanto mais repugnantes e ferinos quanto maior é o número de indivíduos confinados num espaço reduzido. E mesmo se sabemos que esse isolamento do indivíduo, esse egoísmo estreito são em toda parte o princípio fundamental da sociedade atual, eles não se manifestam em nenhum lugar com uma impudência, uma segurança tão totais quanto aqui, precisamente, na multidão da grande cidade. A desagregação da humanidade em mônadas, cada uma das quais tem um princípio de vida particular, essa atomização do mundo é aqui levada ao extremo”. [ENGELS, F. "Die Lage der arbeitenden Klasse in England". In: INSTITUT FÜR MARXISMUS-LENINISMUS BEIM ZK DER SED (Org.). Marx Engels Werke. Vol.2. Berlin: Dietz, 1956, p.257]

Benjamin, que cita esse trecho, comenta que para Engels, vindo “de uma Alemanha provinciana, onde sem dúvida jamais conheceu a tentação de se perder numa onda humana”, [BENJAMIN, W. Charles Baudelaire. Paris: Payot, 1982.
faltava o savoir-faire e a nonchalance do flâneur. De qualquer maneira, a atitude de Engels lembra a de Disraeli em Sybil, que dizia que

“não há comunidade na Inglaterra; há agregação, mas agregação em circunstâncias que a tornam um princípio de dissociação, mais que de associação... É comunidade de propósito que constitui a sociedade... Sem isso, os homens podem ser trazidos à contigüidade mas continuam praticamente isolados. Nas grandes cidades, os homens são reunidos pelo desejo de ganho. No que toca a fazer fortunas, não se encontram em estado de cooperação, mas de isolamento; quanto a tudo o mais, pouco se importam com seus vizinhos. O Cristianismo nos ensina a amar nossos vizinhos como a nós mesmos; a sociedade moderna não reconhece vizinhos”. [Cit. p. NISBET, R. The Sociological Tradition. London: Heinemann, 1970, p. 52]

Não há comunidade na Inglaterra: não há comunidade na cidade. Voltando a Engels, é curioso que todas as suas restrições à metrópole digam respeito a pontos que um cosmopolita pode perfeitamente tomar como positivos. Na grande cidade reúnem-se, indiscriminadamente, pessoas de todas as condições e classes sociais? Mas, segundo Baudelaire, a paixão e a profissão do parfait flâneur é épouser la foule: "O amante da vida universal entra na multidão como num imenso reservatório de eletricidade". [BAUDELAIRE, Ch. Op. cit., p. 795]


As pessoas agem como se nada tivessem em comum, como se nada tivessem a fazer juntas? Mas é porque se livraram da tirania das expectativas e imposições de parentesco ou vizinhança. A simples propinqüidade física não lhes impondo mais intimidades não-eletivas, inevitáveis na sociedade, as pessoas são ao menos formalmente livres para escolher trabalhos, lazeres, amigos e amantes segundo vocação ou inclinação. Além disso, um dos prazeres da vida é justamente -- citando novamente Baudelaire -- o de estar no meio da multidão, sem nada a fazer:

“Estar fora de casa e no entanto se sentir em toda parte em casa: ver o mundo, estar no centro do mundo e continuar escondido do mundo, tais são alguns dos prazeres menores desses espíritos independentes, apaixonados, imparciais, que a linguagem só inadequadamente consegue definir”. [Ibid.]

Cada um cuida isolada e egoisticamente do seu próprio interesse? Mas Adam Smith mostrou que é assim que funciona a engrenagem econômica da sociedade, e o hedonista sabe que, desse modo, produtos e prazeres (e carências e dores) se diversificam ad infinitum:

Vois sur ces canaux
Dormir ces vaisseaux
Dont l'humeur est vagabonde;
C'est pour assouvir
Ton moindre désir
Qu'ils viennent du bout du monde
”.

[“Vê nesses canais
Dormirem esses barcos
Cujo humor é vagabundo;
É por saciar
Teu mínimo desejo
Que vêm do fim do mundo.”]

Por falar nisso, a tese de Adam Smith é de modo geral entendida apenas como uma defesa da economia capitalista liberal. É claro que ela é isso mas, ao mostrar que o mercado basicamente dispensa a intervenção humana consciente, de modo que, segundo a expressão de Mandeville, vícios privados são compatíveis com benefícios públicos, ela também abre espaço para um individualismo radical. Pela primeira vez na história, não é possível invocar o bem comum para impor uniformidade comportamental ou ideológica. Para ser consistente, o laissez-faire deve estender-se também ao que os marxistas chamam de "superestrutura". É esse núcleo absolutamente anti-comunitário e quase anárquico do liberalismo que permite realizar a democracia liberal. Quanto maior a diversidade dos comportamentos e das idéias, mais se diversificam as demandas e as ofertas. Por isso estavam errados os discursos freudianos marxistas, como o de Reich ou de Cooper ou de Lang ou de Mitchell ou de grande parte do Woman's Lib dos anos 60, que julgavam, por exemplo, que entre as condições para a reprodução do capitalismo encontrava-se a compulsoriedade da família monogâmica. Não é verdade. Provou-o a prosperidade dos bairros gays de San Francisco, na época pré-aids. À son insu, Adam Smith permite-nos portanto explicar por que a repressão sexual se liga necessariamente às comunidades, não necessariamente às sociedades e, sobretudo, não às formas supremas de sociedades, que são as megalópoles.


Engels se queixava de que a única convenção entre as pessoas na cidade era o acordo tácito segundo o qual cada um mantinha a sua direita na calçada, afim de que as duas correntes de multidão que se cruzavam não se empatassem mutuamente. Mas precisamente na exclusividade dessa convenção se encontra o auge da civilização. Os regulamentos de trânsito consistem em convenções sistemáticas cuja função é compatibilizar formalmente a liberdade de locomoção de todas as pessoas, através da contenção da locomoção individual no interior dos limites de sua possível universalização. Trata-se da aplicação direta do princípio universal do direito à esfera da locomoção no espaço público. Todas as leis legítimas são baseadas nesse modelo.

Mas creio que já está claro o tipo de unholy alliance que se formou contra a sociedade aberta e moderna. Enquanto os apologistas do ancien régime tentavam desmoralizar não só a Revolução Francesa mas todo liberalismo, os revolucionários garantiam que, o ancien régime já tendo sido derrotado, a luta agora não era mais pela defesa do direito enquanto liberdade mas contra ele, na medida em que ele representava o triunfo do individualismo, inimigo do comunismo. O inimigo principal do revolucionário não eram mais as classes tradicionais e o caráter fechado e particular das antigas instituições e concepções do mundo. A concepção contra a qual ele lutava e que, em aliança com as classes tradicionais, buscava desmoralizar, era a da sociedade aberta que, antes mesmo de ser totalmente explicitada já era considerada "superada". O resultado é que, longe de experimentar as últimas consequências libertárias da abertura da sociedade, o mundo começou a sofrer uma restauração aristocratizante e religiosa da qual ainda hoje não se libertou.

"Há", diz com razão o historiador Arno Mayer,


“uma clara tendência a subestimar e a desvalorizar a capacidade de resistência das velhas forças e das velhas idéias, e sua habilidade para assimilar, atrazar, neutralisar e subjugar a modernização capitalista, inclusive a industrialização”. [MAYER, A. La Persistance de l'ancien regime. Paris: Flammarion, 1983, p. 12]

Assim, virou senso comum a crença de que a modernidade e a razão são "totalitárias" e de que já foram longe demais.


Fala-se por exemplo do caráter destrutivo da razão. O nosso tempo, em consequência de sua racionalidade exagerada, teria visto a destruição ou a morte do mito, da religião, da moral, da arte em geral e da pintura em particular, dos cânones etc. Que se quer dizer com isso? No que toca a religião, terão as igrejas sido incendiadas ou transformadas em museus, os padres executados e as freiras violentadas? Em alguns países coisas semelhantes de fato ocorreram. Mas nesses casos, diríamos sem dúvida que as pessoas, os partidos ou Estados que assim agiram o fizeram antes contra a razão -- por fanatismo religioso ou político -- do que em virtude de sua racionalidade. De maneira geral porém, nos países em que se costuma acusar a razão de ter sido mais destrutiva, porque mais presente -- na Europa Ocidental e nos Estados Unidos -- não tem havido perseguição significativa à religião. Ao contrário, pode dizer-se que todas as religiões têm conhecido uma liberdade exemplar. Nenhuma religião positiva devendo ser privilegiada pelo Estado laico, todas (como também a ausência de religião) são -- ou melhor, deveriam ser -- igualmente toleradas. Por que, então, a retórica sobre a destruição da religião? Porque no fundo o que se lamenta é justamente a liberdade indiscriminada das religiões. O que se lamenta é a perda do privilégio de determinada ou determinadas religiões em relação às demais e à irreligiosidade ou ao ateísmo. O que se lamenta, em outras palavras, não é que a religião esteja sendo destruída pela razão mas que determinadas religiões, bem como as heresias, a irreligiosidade, o ateísmo e os ateus, não estejam sendo destruídos ou perseguidos pelo Estado laicizado.

Mutatis mutandis, o que acabo de afirmar sobre a religião pode ser repetido sobre os demais itens culturais que se supõe estarem sendo destruídos pelo mundo moderno. No que toca à moral, por exemplo, racionalmente ninguém pode ser impedido de ter os princípios ou valores que queira, nem de se orientar ou de se comportar de acordo com eles, exceto na medida em que impeçam outros de desfrutarem da mesma liberdade. Racionalmente, o Estado não pode favorecer este ou aquele preceito, este ou aquele valor, sobre outros preceitos ou valores positivos, reais ou possíveis, que o contradigam. Assim, no Estado que se pretende racional, cada qual pode ter os valores morais que bem entender -- mesmo que inteiramente contrários aos da "maioria" -- desde que não firam as condições mínimas de possibilidade de haver sociedade. A bem da verdade é preciso dizer que os Estados positivos estão ainda longe de serem totalmente racionais nesse sentido. No entanto, eles já realizaram um grande progresso na direção da racionalidade, em comparação com os Estados reconhecidamente pré-modernos. De qualquer maneira, é evidente que quando alguém diz que a razão trouxe a destruição da moral, o que quer dizer é que os seus pontos de vista no que toca à moral deveriam ser defendidos contra os pontos de vista dos outros. O que está pedindo portanto é a destruição ou o aniquilamento dos princípios alheios.


Da mesma forma, fala-se muito da destruição ou da morte da arte. Os próprios artistas falam assim. Supõe-se obscuramente que os vírus da modernidade -- ou quem sabe simplesmente as forças do mercado -- estaria levando os artistas a aniquilarem a arte. No entanto, ninguém está destruindo as pinturas ou esculturas ou queimando os livros ou matando os artistas. Ao contrário, nunca houve tantos museus, galerias, escolas de arte, livros de arte, filmes sobre arte e artistas, conferências etc. Quem quer pintar, pinta: e mais gente do que nunca o faz. Quem quer pintar segundo técnicas tradicionais -- de qualquer tradição que queira, desde a têmpera medieval até pintura acrílica -- o faz; e nunca tantas técnicas de tantas tradições estiveram disponíveis a tanta gente, sem contar novas técnicas, que surgem todos os dias. Tudo é possível hoje em pintura. Os demais gêneros artísticos tradicionais não se encontram em situação diferente. Além disso, nada do que prentenda ser expressão artística é hoje descartado sumariamente. Tudo merece atenção, discussão, exposição. Por que então dizer que a arte foi ou está sendo destruida pela modernidade? Porque as formas e os gêneros tradicionais de se fazer arte não detêm mais monopólio algum; em outras palavras, porque as formas alternativas de se fazer arte não são mais perseguidas, proibidas ou destruídas. É isso que se lamenta.


CICERO, A. O mundo desde o fim. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995, p.151-166.

Lewis Carroll: Através do espelho

“Ninguém está na estrada”, disse Alice.
“Ah se eu tivesse olhos assim”, o rei observou num tom irritado. “Ser capaz de ver Ninguém! E, além disso, a uma tal distância! Ora, o máximo que consigo com essa luz é ver pessoas de verdade!”

“I see nobody on the road”, said Alice.
“I only wish I had such eyes”, the King remarked in a fretful tone. “To be able to see Nobody! And at that distance too! Why, it’s as much as I can do to see real people, by this light.


CARROLL, L. "Through the looking -glass". With an introduction and notes by M. Gardner. In: _____. The annotated Alice. Lewis Carroll. New York: Penguin, 1970. P.279.

19.7.07

Manuel Bandeira: Grande Sertão: Veredas

AMIGO MEU, J. Guimarães Rosa, mano-velho, muito saudar!
Me desculpe, mas só agora pude campear tempo para ler o romance de Riobaldo. Como que pudesse antes? Compromisso daqui, obrigação dacolá... Você sabe: a vida é um Itamarati - viver é muito dificultoso.
Ao despois de depois, andaram dizendo que você tinha inventado uma língua nova e eu não gosto de língua inventada. Sempre arreneguei de esperantos e volapuques. Vai-se ver, não é língua nova nenhuma a do Riobaldo. Difícil é, às vezes. Quanta palavra do sertão! A princípio, muito aplicadamente, ia procurar a significação no dicionário. Não encontrava. Pena o título: Grande Sertão: Veredas. Nenhum dicionário dá a palavra "vereda" com o significado que você mesmo define à página 74: "Rio é só o São Francisco, o Rio do Chico. O resto pequeno é vereda." Tinha vezes que pelo contexto eu inteligia: "ciriri dos grilos", "gugo da juriti" etc. Mas até agora não sei, me ensine, o que é "arga", "suscenso", "lugugem" e um desadôro de outras vozes dos gerais. Tinha vezes que eu nem podia atinar se a palavra era nome de bicho vivente, plantinha ou coisa sem corpo nem côr nem coragem, abstrato que se diz, não é? Ou é? Ou será?
Ainda por cima disso, você fez Riobaldo poeta, como Shakespeare fez Macbeth poeta. Natural: por que um jagunço dos gerais demais do Urucuia não poderá ser poeta? Pode sim. Riobaldo é você se você fosse jagunço A sua invenção é essa: pôr o jagunço poeta inventando dentro da linguagem habitual dele. O vocabulário dele já é riquíssimo, dá a impressão que não ficou de fora nenhuma dicção de seus pagos e arredores; aumentado com os neologismos, sempre de boa formação lingüística, ficou um potosi, nossa! A gente acaba tendo que entregar os pontos, nem que seja um Gilberto Amado. O diabo é que depois de ler você a gente começa a se sentir e cantar eu sou pobre, pobre, pobre, rema, rema, rema, ré.
Só que acho que não precisava contar de um rojão só, como o Joyce do último capítulo de Ulysses, as 594 páginas da história de Riobaldo. Quantas horas levaria? Eu levei dias para ler. Ainda bem que você virgulou tudo, minudente. E o caso de Diadorim, seria mesmo possível? Você é dos gerais, você é que sabe. Mas eu tive a minha decepção quando se descobriu que Diadorim era mulher. Honni soit qui mal y pense, eu preferia Diadorim homem até o fim. Como você disfarçou bem! nunca que maldei nada.
Amigo meu J. Guimarães Rosa, mano-velho, o menino Guirigó e o cego Borromeu são duas criações geniais. Aliás todo esse mundo de gente vive com uma intensidade assombrosa. E o sertão?

O sertão é uma espera enorme.

E o silêncio?

O vento é verde. Aí, no intervalo, o senhor pega o silêncio, põe no colo.

Tão deleitável tudo, nem que estar nos braços da linda moça Rosa'uarda, ou de Nhorinhá, de Ana Dazuza filha, ou daquela prostitutriz que

proseava gentil sobre as sérias imoralidades.

Ah Rosa, mano-velho, invejo é o que você sabe:

O diabo não há! Existe é o homem humano.

Soscrevo.
13/03/1957



BANDEIRA, M. "Grande sertão: veredas". In: Poesia completa e prosa. 2 ed. Rio de Janeiro: Aguilar, 1967. p.590-92.

17.7.07

Ferreira Gullar: Sete poemas portugueses. Nº 4

Esse é o quarto dos extraordinários “Sete poemas portugueses” de Ferreira Gullar:

4.
Nada vos oferto
além destas mortes
de que me alimento

Caminhos não há
Mas os pés na grama
os inventarão

Aqui se inicia
uma viagem clara
para a encantação

Fonte, flor em fogo,
que é que nos espera
por detrás da noite?

Nada vos sovino:
com a minha incerteza
vos ilumino


GULLAR, Ferreira. “Sete poemas portugueses” Nº4. In:_____. Toda poesia. 1950-1980. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. P.18.

15.7.07

A relevância da política

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Ilustrada da Folha de São Paulo, sábado, 14 de julho de 2007:


A RELEVÂNCIA DA POLÍTICA

Lembro-me de que quando eu era estudante universitário, no final da década de sessenta, parecia evidente a todo o mundo (ou pelo menos a todo o mundo de esquerda) que nos Estados Unidos não havia nenhuma diferença substancial entre o Partido Democrata e o Partido Republicano. Essa era a tese dos marxistas, mas ela havia encontrado apoio também, desde a década de cinqüenta, em autores independentes, como Wright Mills. E era o que Herbert Marcuse e, de maneira geral, os filósofos e ideólogos da contra-cultura pensavam.
Nessa época, a guerra do Vietnam, que havia tomado corpo com um democrata (Kennedy), engrossado com outro (Johnson), e que continuava sua “escalada” com um republicano (Nixon), parecia confirmar que a cara de um partido era o focinho do outro.
De lá para cá, também entre grande parte dos intelectuais americanos tornou-se senso comum a opinião – expressa, por exemplo, por Chomsky e por vários representantes locais do pós-estruturalismo – de que nos Estados Unidos as eleições não são muito relevantes. As enormes taxas de absenteísmo eleitoral que lá se verificam levam a supor que talvez até uma parte considerável dos eleitores americanos – entre os quais muitos jovens e muitos pretos – também pensem assim.
A verdade, porém, é que ultimamente não tem mais sido possível acreditar nessa tese. Tendo em vista o verdadeiro ataque perpetrado pela administração republicana de George Bush à razão, ao Estado de direito e à democracia nos Estados Unidos, seria inteiramente absurdo pensar que não haja uma diferença extremamente relevante entre ele e, por exemplo, o seu predecessor democrata, Bill Clinton.
Para prová-lo, bastaria citar o fato de que, brandindo o pretexto do terrorismo, Bush conseguiu fazer aprovar pelo Congresso, então majoritariamente republicano, o “Military Commissions Act”, uma lei que, em certas circunstâncias, torna admissível a tortura e põe fora de ação o instituto do habeas corpus: retrocesso jurídico simplesmente inconcebível há poucos anos e que constitui uma afronta inominável aos direitos humanos. Por ocasião da sua aprovação, o jornal “New York Times” (28/9/2006), com toda razão, declarou em editorial que, no futuro, os americanos se lembrarão de que, “em 2006, o Congresso passou uma lei tirânica que será considerada como um dos pontos baixos da democracia americana”. E poderíamos lembrar que, ainda antes da aprovação dessa lei, o governo Bush já se permitira seqüestrar, encarcerar e submeter pessoas que jamais sequer haviam sido formalmente acusadas de qualquer crime específico a torturas e tratamentos indignos.
E que dizer do fato de que ele subverte o princípio de controles e equilíbrios (checks and balances) que garante a independência dos poderes, ao pressionar, ameaçando de demissão, os juízes que não se conformem com os seus desígnios? Ou da sua tentativa de solapar a autonomia da ciência, ao incentivar, contra a teoria científica da evolução, a divulgação e o ensino da teoria pseudo-científica do “intelligent design”? Ou da parcialidade do seu governo às iniciativas religiosas em todos os campos, minando o caráter laico do Estado?
Eu poderia continuar, falando, por exemplo, da sua política econômica, que acaba por redistribuir a renda a favor dos mais ricos; ou da sua destruição sistemática do sistema de saúde pública. O principal, porém, é outra coisa: é que devemos compreender que a tese da irrelevância da política não somente contribuiu para pôr Bush no poder, como é a tese que mais convém a ele e a seus aliados, pois o que eles atacam é precisamente a política; e é a que menos convém àqueles que defendem a liberdade nos Estados Unidos ou em qualquer outro país.
Fala-se às vezes da “democracia direta”, como um antídoto à “irrelevância da política”. Mas os atos citados de Bush seriam condenáveis, ainda que houvessem sido apoiados pelo povo inteiro através de plebiscitos, como certamente teriam sido, logo após o 11 de setembro. A "democracia direta" pode ser uma ditadura plebiscitária, como a de Chávez. Não devemos nos esquecer de que as ditaduras sanguinárias de Hitler, de Stalin, de Mao Tsé-tung e de Pol Pot eram apoiadas pela maioria, logo, nesse sentido, "democráticas". A razão nem sempre está com a maioria: pode estar até com um homem só.
Por isso, mesmo para lutar contra as desigualdades sociais, devemos defender a sociedade aberta e laica, o Estado de direito, a livre expressão, a maximização da liberdade individual, a coexistência de uma multiplicidade de culturas e formas de vida, a autonomia da ciência, a autonomia da arte etc. E defender isso é defender a relevância da política.

Antonio Cicero

12.7.07

Richard Porson: Filosofia natural

Referindo-se á seguinte anedota sobre o classicista do século XVII, Richard Porson, o crítico americano Paul Elmer More declarou: “À embriaguez de Porson devemos, é preciso reconhecer, o mais profundo enunciado de pessimismo que jamais escapou de lábios humanos”.



Filosofia natural

Certa noite, encontrava-se em seu estado habitual. Querendo apagar sua vela e vendo, como se diz ocorrer aos inebriados, duas chamas lado a lado onde havia apenas uma, três vezes dirigiu seus passos cambaleantes à imagem errada e três vezes soprou sem efeito, pois o inexistente não pode ser extinto. Ante isso, afastou-se, equilibrou-se e pronunciou o veredicto: “Maldita seja a natureza das coisas!”


Cit. in: CAIRNS, H. (Org.). The limits of art. Poetry and prose chosen by ancient and modern critics. New York: Pantheon Books, 1948. P. 1005.

Natural philosophy

He was in his customary state one night. Wishing to blow out his candle, and seeing, as is said to be the way of the inebriated, two flames side by side where there was only one, he three times directed his swaying steps to the wrong image, and three times blew, with no effect, for the non-existent cannot be extinguished. Whereupon he drew back, balanced himself, and gave verdict: “Damn the nature of things!”


he drew back,

11.7.07

Anatole France: Le jardin d'Épicure (trecho)

Embora eu jamais jogue e não tenha a menor intenção de fazer qualquer apologia do jogo de azar, acho admirável, por razões puramente estéticas, o seguinte texto de Anatole France:



Os jogadores jogam como os amantes amam, como os ébrios bebem, necessária, cegamente, sob o império de uma força irresistível. Há seres devotados ao jogo, como há seres devotados ao amor. Quem inventou a história daqueles dois marinheiros possuídos pelo furor do jogo? Naufragaram e só escaparam à morte após terríveis aventuras, pulando para o dorso de uma baleia. Assim que lá se encontraram, tiraram dos bolsos seus dados e seus fritilos e se puseram a jogar. Eis uma história mais verdadeira que a verdade. Cada jogador é um desses marinheiros. E com certeza há no jogo algo que remexe todas as fibras dos audazes. Não é uma volúpia medíocre tentar a sorte. Não é um prazer sem embriaguez provar num segundo meses, anos, uma vida inteira de esperança. Eu não tinha nem dez anos quando o sr. Grépinet, meu professor da nona, leu-nos em sala de aula a fábula do Homem e do Gênio. No entanto, recordo-a melhor do que se a tivesse escutado ontem. Um gênio dá a um menino um novelo e lhe diz: “Este fio é o dos teus dias. Toma-o. Quando quiseres que o tempo escoe para ti, puxa o fio: teus dias passarão rápidos ou lentos segundo desenroles o novelo rápida ou morosamente. Enquanto não tocares no fio, ficarás na mesma hora da tua existência.” O menino tomou o fio; puxou-o primeiro para se tornar homem, depois para se casar com a noiva amada, depois para ver crescerem os seus filhos, depois para conseguir empregos, lucros, honrarias, para superar as preocupações, evitar as mágoas, as doenças vindas com a idade, enfim – que fazer? – para terminar uma velhice importuna. Tinha vivido quatro meses e seis dias desde a visita do gênio.

Pois bem, que é o jogo senão a arte de obter num segundo as mudanças que o destino só produz normalmente em muitas horas e mesmo em muitos anos, a arte de acumular num único instante as emoções esparsas na lenta existência dos outros homens, o segredo de viver a vida inteira em alguns minutos, enfim, o novelo do gênio? O jogo é um corpo a corpo com o destino. É o combate de Jacó com o anjo, o pacto do dr. Fausto com o diabo. Joga-se dinheiro – dinheiro, quer dizer, a possibilidade imediata, infinita. Talvez a carta que se vai virar, a bilha que está a correr dê ao jogador parques e jardins, campos e vastos bosques, e castelos a elevar no céu suas torres pontudas. Sim, essa pequena bilha que corre contém em si hectares de boa terra e tetos de ardosia cujas chaminés esculpidas se refletem no Loire; encerra tesouros de arte, maravilhas do gosto, jóias prodigiosas, os mais belos corpos do mundo, almas, mesmo, que nem se imaginavam venais, todas as condecorações, todas as honras, toda a graça e todo o poder da terra. Que digo? Encerra mais que isso: encerra o sonho. E você quer que eu não jogue? Se o jogo só fizesse mostrar esperanças infinitas, se só mostrasse o sorriso dos seus olhos verdes, seria amado com menos furor. Mas tem unhas de diamante, é terrível, dá, quando lhe compraz, a miséria e a vergonha; eis porque é adorado.

A atração do perigo está no fundo de todas as grandes paixões. Não há volúpia sem vertigem. O prazer mesclado ao medo embriaga. E que há de mais terrível que o jogo? Ele dá, ele toma; suas razões não são as nossas razões. Ele é mudo, cego e surdo. Ele pode tudo. É um deus.

É um deus. Tem seus devotos e seus santos que o amam pelo que é, não pelo que promete, e que o adoram quando os golpeia. Se os despoja cruelmente, imputam a culpa a si mesmos, não a ele.

“Joguei mal”, dizem.

Acusam-se e não blasfemam.



Em: FRANCE, Anatole. Le jardin d’Épicure. Paris: Calmann-Lévy, Éditeurs, 1923. P. 14-18.



Les joueurs jouent comme les amoureux aiment, comme les ivrognes boivent, nécessairement, aveuglément, sous l'empire d'une force irrésistible. Il est des êtres voués au jeu, comme il est des êtres voués à l'amour. Qui donc a inventé l'histoire de ces deux matelots possédés de la fureur du jeu? Ils firent naufrage et n'échappèrent à la mort, après les plus terribles aventures, qu'en sautant sur le dos d'une baleine. Aussitôt qu'ils y furent, ils tirèrent de leur poche leurs dés et leurs cornets et se mirent à jouer. Voilà une histoire plus vraie que la vérité Chaque joueur est un de ces matelots-là. Et certes, il y a dans le jeu quelque chose qui remue terriblement toutes les fibres des audacieux. Ce n'est pas une volupté médiocre que de tenter le sort. Ce n'est pas un plaisir sans ivresse que de goûter en une seconde des mois, des années, toute une vie de crainte et d'espérance. Je n'avais pas dix ans quand M. Grépinet, mon professeur de neuvième, nous lut en classe la fable de l'Homme et le Génie. Pourtant je me la rappelle mieux que si je l'avais entendue hier. Un génie donne à un enfant un peloton de fil et lui dit : « Ce fil est celui de tes jours. Prends-le. Quand tu voudras que le temps, s'écoule pour toi, tire le fil : tes jours se passeront rapides ou lents selon que tu auras dévidé le peloton vite ou longuement. Tant que tu ne toucheras pas au fil, tu resteras à la même heure de ton existence. » L'enfant prit le fil; il le tira d'abord pour devenir un homme, puis pour épouser la fiancée qu'il aimait, puis pour voir grandir ses enfants, pour atteindre les emplois, le gain, les honneurs, pour franchir les soucis, éviter les chagrins, les maladies venues avec l'âge, enfin, hélas! pour achever une vieillesse importune. II avait vécu quatre mois et six jours depuis la visite du génie.

Eh bien! le jeu, qu'est-ce donc sinon l'art d'amener en une seconde les changements que la destinée ne produit d'ordinaire qu'en beaucoup d'heures et même en beaucoup d'années, l'art de ramasser en un seul instant les émotions éparses dans la lente existence des autres hommes, le secret de vivre toute une vie en quelques minutes, enfin le peloton de fil du génie? Le jeu, c'est un corps-à-corps avec le destin. C'est le combat de Jacob avec l'ange, c'est le pacte du docteur Faust avec le diable. On joue de l'argent, - de l'argent, c'est-â-dire la possibilité immédiate, infinie. Peut-être la carte qu'on va retourner, la bille qui court donnera au joueur des parcs et des jardins, des champs et de vastes bois, des châteaux élevant dans le ciel leurs tourelles pointues. Oui, cette petite bille qui roule contient en elle des hectares de bonne terre et des toits d'ardoise dont les cheminées sculptées se reflètent dans la Loire; elle renferme les trésors de l'art, les merveilles du goût, des bijoux prodigieux, les plus beaux corps du monde, des âmes, même, qu'on ne croyait pas vénales, toutes les décorations, tous les honneurs, toute la grâce et toute la puissance de la -terre. Que dis-je? elle renferme mieux que cela; elle en renferme le rêve. Et vous voulez qu'on ne joue pas? Si encore le jeu ne faisait que donner des espérances infinies, s'il ne montrait que le sourire de ses yeux verts on l'aimerait avec moins de rage. Mais il a des ongles de diamant, il est terrible, il donne, quand il lui plait, là misère et la honte; c'est pourquoi on l'adore.

L'attrait du danger est au fond de toutes les grandes passions. Il n'y a pas de volupté pans vertige. Le plaisir mêlé de peur enivre. Et quoi de plus terrible que le jeu? Il donne, il prend; ses raisons ne sont point nos raisons. Il est muet, aveugle et sourd. Il peut tout. C'est un dieu.

C'est un dieu. Il a ses dévots et ses saints qui l'aiment pour lui-même, non pour ce qu'il promet, et qui l'adorent quand il les frappe. S'il les dépouille cruellement, ils en imputent la faute à eux-mômes, non à lui.

« J'ai mal joué », disent-ils.

Ils s'accusent et ne blasphèment pas.

9.7.07

Luis Cernuda: En medio de la multitud

En medio de la multitud


En medio de la multitud le vi pasar, con sus ojos tan rubios como la cabellera. Marchaba abriendo el aire y los cuerpos; una mujer se arrodilló a su paso. Yo sentí cómo la sangre desertaba mis venas gota a gota.

Vacío, anduve sin rumbo por la ciudad. Gentes extrañas pasaban a mi lado sin verme. Un cuerpo se derritió con leve susurro al tropezarme. Anduve más y más.

No sentía mis pies. Quise cogerlos en mi mano y no hallé mis manos; quise gritar, y no hallé mi voz. La niebla me envolvía.

Me pesaba la vida como un remordimiento; quise arrojarla de mí. Mas era imposible, porque estaba muerto y andaba entre los muertos.



De: CERNUDA, Luis. “Los placeres prohibidos”. In: Poesia completa. Vol.1. 2ª ed. Madrid: Siruela, 1994. P.176-7.

7.7.07

Omar Salomão: À deriva

Do belo livro À deriva, de Omar Salomão, o poema homônimo:


À DERIVA

Em pleno alto mar
Perco-me de vista

Velas hasteadas,
Mapa, bússola, astrolábio e radar
Aguardo por alísios ventos
Que me levem para longe
Que me ponham a navegar

Saio à caça de algo
Um arpão vara o céu
Em meio ao nevoeiro
Não encontro garrafas, barcos ou camaradas

Deitado na rede
Uma voz grave me sussurra histórias de Iemanjá

Miro o céu sem estrelas
E peço por alguém que me dê
um sopro de ar.

SALOMÃO, Omar. À deriva. Rio de Janeiro: Dantes, 2005, p.28.

5.7.07

Arthur Schopenhauer: de O mundo como vontade e representação

O seguinte capítulo de O mundo como vontade e representação, de Schopenhauer (que aqui publico na tradução portuguesa de Sá Correia), traça uma distinção entre a idéia singular e concreta e o conceito, universal e abstrato. Texto profundo e, no entanto, claríssimo, considero-o um tour de force de filosofia.

O princípio que constitui o fundamento de tudo o que dissemos até aqui sobre a arte é que o objecto da arte, o objecto que o artista se esforça por representar, o objecto cujo conhecimento deve preceder e engendrar a obra, como o germe precede e engendra a planta, esse objecto é uma Ideia, no sentido platónico do termo, e absolutamente mais nada; não é a coisa particular, visto que não é o objecto da nossa concepção vulgar; também não é o conceito, visto que não é o objecto do entendimento, nem da ciência. Sem dúvida a Ideia e o conceito têm qualquer coisa de comum, na medida em que ambos são unidades que representam uma pluralidade de coisas reais; apesar de tudo, há entre eles uma grande diferença; e é esta diferença que explica duma maneira suficientemente clara e luminosa o que disse acerca do conceito no primeiro livro e acerca das Ideias neste. Teria já Platão concebido claramente esta diferença? não quero de modo nenhum afirmá-lo: ele dá, a propósito das Ideias, numerosos exemplos e explicações que se poderiam aplicar a simples conceitos. Deixemos entretanto esta questão sem resposta e continuemos o nosso caminho, felizes todas as vezes que nos encontrarmos sobre as marcas dum grande e nobre espírito, mais preocupados ainda, apesar de tudo, em prosseguir o nosso fim do que por nos ligarmos aos seus passos. - O conceito é abstracto e discursivo; completamente indeterminado, quanto ao seu conteúdo, nada nele é preciso a não ser os seus limites; o entendimento é suficiente para o compreender e para o conceber; as palavras, sem outro intermediário, são suficientes para o exprimir; a sua própria definição, enfim, esgota-o completamente. A Ideia, pelo contrário, que se pode rigorosamente definir como o representante adequado do conceito, é absolutamente concreta; por mais que ela represente uma infinidade de coisas particulares, não é menos determinada em todos os seus aspectos; o indivíduo, enquanto indivíduo, nunca a pode conhecer; é preciso, para a conceber, despojar toda a vontade, toda a individualidade, e elevar-se ao estado de puro sujeito que conhece; também se pode dizer que ela está escondida de todas, excepto do génio e daquele que, graças a uma exaltação da sua faculdade de conhecimento puro (devido quase sempre às obras de arte), se encontra num estado vizinho do génio: a Ideia não é essencialmente comunicável, ela só o é relativamente, visto que, uma vez concebida e expressa na obra de arte, ela só se revela a cada um proporcionalmente ao valor do seu espírito; eis precisamente por que as obras mais excelentes de todas as artes, os monumentos mais gloriosos do génio, são destinados a permanecer eternamente cartas fechadas para a estúpida maioria dos mortais; para estes as obras de arte são impenetráveis, elas estão à parte, separadas por um largo abismo e assemelham-se ao príncipe cujo acesso não é permitido ao povo. Apesar de tudo, os mais tolos dos homens não confiam menos nas obras de arte consagradas, visto que não querem de modo nenhum deixar ver a sua tolice, mas estão dispostos, no seu foro íntimo, a condenar essas mesmas obras de arte, desde que se lhes faça esperar que possam fazê-lo sem nenhum perigo de se revelarem; então descarregam com deleite esse ódio muito tempo alimentado em segredo contra o belo e contra aqueles que o realizam; não podem perdoar às obras de arte o terem-nos humilhado não lhes dizendo nada: visto que, em geral, para apreciar de boa vontade e livremente o valor do outro, para o fazer valer, é necessário possuí-lo o próprio. É aí que se funda a necessidade de ser modesto, uma vez que se tenha mérito; é também aí que assenta a estima excessiva que se tem pela modéstia: sozinha, entre todas as suas irmãs, essa virtude nunca é esquecida, desde que se ouse fazer o elogio dum homem de mérito; é que se espera, ao elogiá-la, fazer prova de intenções conciliantes e apaziguar a cólera dos imbecis. O que é, com efeito, a modéstia, senão uma fingida humildade, pela qual, no seio deste mundo infectado pela mais detestável inveja, se pede desculpa pelas vantagens e pelos méritos a pessoas que são desprovidas de ambos? Porque aquele que não se atribui nem vantagens nem méritos, pela simples razão de que efectivamente não os possui, esse não é de modo nenhum modesto, é só honesto.

A Ideia é a unidade que se transforma em pluralidade por meio do espaço e do tempo, formas da nossa apercepção intuitiva; o conceito, pelo contrário, é a unidade extraída da pluralidade, por meio da abstracção que é um procedimento do nosso entendimento; o conceito pode ser chamado unitas post rem, a Ideia, unitas ante rem. Indiquemos, finalmente, uma comparação que exprime bem a diferença entre conceito e Ideia: o conceito assemelha-se a um recipiente inanimado; aquilo que lá se deposita permanece bem colocado na mesma ordem, mas não se pode tirar de lá (através dos juízos analíticos) nada mais do que aquilo que lá se colocou (através da reflexão sintética); a Ideia, pelo contrário, revela àquele que a concebeu representações completamente novas do ponto de vista do conceito de mesmo nome: ela é como um organismo vivo, que cresce e é prolífico, capaz, numa palavra, de produzir aquilo que não se introduziu lá.

Consequentemente, qualquer que seja, na prática, a utilidade do conceito, quaisquer que sejam as suas aplicações, a sua necessidade, a sua fecundidade nas ciências, não permanece menos eternamente estéril sob o ponto de vista artístico. Pelo contrário, uma vez concebida, a Ideia torna-se a fonte verdadeira e única de toda a obra de arte digna deste nome. Completamente cheia duma vigorosa originalidade, residindo no seio da vida e da natureza, ela é apenas acessível ao génio ou ao homem cujas faculdades se elevam por um instante até ao génio. É apenas duma visão tão directa que podem nascer as obras verdadeiras, aquelas que trazem em si a imortalidade. Como a Ideia é e permanece intuitiva, o artista não tem nenhuma consciência in abstracto da intenção nem da finalidade da sua obra; não é um conceito, é uma Ideia que paira diante dele; não pode igualmente dar conta do que faz; trabalha, como se diz vulgarmente, por palpite, inconscientemente, instintivamente. Completamente ao contrário, os imitadores, os maneiristas, «imitatores, servum pecus», passam do conceito para a arte: eles anotam aquilo que agrada, o que provoca o efeito nas verdadeiras obras de arte; analisam-no, concebem-no sob a forma de conceito, isto é, abstractamente; fazem dele, enfim, à força de prudência e de aplicação, uma imitação confessada ou não. Semelhantes às plantas parasitas, sugam a sua alimentação, tiram-na das obras dos outros e tomam a cor dos seus alimentos como pólipos. Levando mais longe a comparação, poder-se-ia ainda dizer que eles se assemelham a máquinas que cortam muito miúdo e misturam tudo o que lá se lança, mas não podem nunca digeri-lo; deste modo os elementos estranhos podem sempre ser reconhecidos, isolados, distinguidos. Só o génio pode ser comparado a um corpo organizado que digere, elabora e produz. Sem dúvida que ele se forma na escola dos seus predecessores no exemplo das suas obras, mas só se torna fecundo pelo contacto imediato com a vida e com o mundo, sob a influência da intuição; eis por que a educação, por mais perfeita que seja, nunca eclipsa a sua originalidade. Todos os imitadores, todos os maneiristas concebem sob a forma de conceito as obras estranhas que lhes servem de modelos; ora nunca um conceito poderá dar a uma obra a vida interior. Os contemporâneos, isto é, tudo o que a época produz de pessoas medíocres, conhecem apenas os conceitos e são incapazes de se desligarem deles; eis por que acolhem com prontidão e entusiasmo as obras imitadas. Mas poucos anos bastarão para tornar essas mesmas obras enfadonhas, visto que o único fundamento sobre que repousa o seu encanto, isto é, o espírito do tempo e o conjunto dos conceitos familiares à época, serão bem depressa transformados.

Só as obras verdadeiras, tiradas directamente do seio da natureza e da vida, permanecem eternamente jovens e sempre originais, como a própria natureza e a própria vida, visto que não pertencem a nenhuma época, são da humanidade. Os contemporâneos, a que elas não se dignam comprazer, acolhem-nas com frieza; não se lhes pode perdoar terem implícita e indirectamente desvendado os erros da época; além disso só se lhes presta justiça tardiamente e de bastante má vontade; mas em compensação elas não podem envelhecer; até nos tempos mais recuados, elas conservam a sua expressão, a sua frescura, a sua juventude sempre renascente; aliás não têm nada a temer nem do desprezo, nem do esquecimento, a partir do momento em que foram coroadas pela aprovação e pelos aplausos desse pequeno número de homens esclarecidos que aparecem em raros intervalos nos séculos (apparent rari nantes in gurgite vasto) e que emitem os seus juízos; são os seus sufrágios, acumulando-se, que constituem por si só a autoridade e o árbitro aos quais se ouve apelar, quando se evoca o juízo da posteridade, visto que no futuro a multidão será e permanecerá sempre tão atrasada e tão estúpida como não deixou de ser no passado. - Remeto o leitor para as lamentações que os grandes génios de cada época elevam contra os seus contemporâneos: têm o aspecto de serem de hoje; é que a raça humana é sempre a mesma. Em todos os tempos e em todas as artes a afectação substitui a inspiração, que é a propriedade exclusiva dum pequeno número; ora a afectação é um vestuário sob o qual o génio brilhou um instante; uma vez usado, rejeita-o e as pessoas apanham-no. Resulta de tudo isto que, em geral, para ter a aprovação da posteridade é preciso renunciar à dos contemporâneos, e reciprocamente.

SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e representação. Trad. de M. Sá Correia. Porto: RÉS, s.d., p.307-312.

3.7.07

Alberto Pucheu: A luta antes da luta

Um poema admirável do livro A fronteira desguarnecida (poesia reunida 1993-2007), que Alberto Pucheu acaba de lançar:


A LUTA ANTES DA LUTA

Você sabe, de nada adianta rezar no canto do ringue.
Aquele que nele sobe, sobe sozinho.
As bravatas lançadas na hora da pesagem
e o peso da multidão colado em sua carne,
você sabe, lá em cima, só aumentarão seu abandono.
Você sabe também o preço que terá de pagar
se deixar que qualquer vagabundo desfigure
sua fisionomia. Mas é isso que você quer?
Não é isso que você quer. Aconteça
o que acontecer, não jogarei a toalha, não é para isso
que chegamos até aqui... Você ainda é muito novo
para perder, e sua família, muito necessitada. Você sabe,
você tem de deixar seu passado para trás, eu sei que você
não quer voltar para as ruas, para o crime, para a cadeia...
Portanto, quando subir lá em cima, eu lhe digo,
não deixe que o adversário veja medo em sua face:
se, ainda antes do primeiro soar do gongo, ele
vislumbrar uma mínima expressão de temor em seu rosto,
conhecerá o caminho mais rápido
para encontrá-lo durante o combate. Mas você
não terá nenhum instante de fraqueza nesse combate,
você está preparado, eu sei que você está preparado,
e você também sabe disso. Ninguém quer acordar amanhã
num quarto de hospital... você quer acordar
num quarto de hospital balbuciando palavras desconexas?
Ein? Você quer acordar num quarto de hospital,
com sua mulher chorando preocupada ao lado da cama?
Não, você não quer isso pra você nem pra sua família,
nem eu quero isso para o meu garoto de ouro. Por isso,
treinamos duro, por isso, treinamos tanto. Então, vá lá
em cima, já estão anunciando seu nome, suba
para o quadrado, suba, já começaram a tocar a música,
vá para o ringue e, no meio do entrevero,
por entre as saraivadas de golpes,
faça seu adversário sentir o peso do esquecimento
carregando-o para longe do estádio, carregando-o
para longe de todo e qualquer lugar.



De: PUCHEU, Alberto. A fronteira desguarnecida (poesia reunida 1993-2007). Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2007, p.236.

1.7.07

A razão da modernidade

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Folha de São Paulo, sábado, 30 de Junho de 2007:

A razão da modernidade

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Nossa época, diz Kant, é propriamente a época da crítica, à qual tudo deve submeter-se
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SÃO FREQÜENTEMENTE atribuídas à modernidade (ou à racionalidade, ou à razão, ou à "racionalidade moderna" etc.) as inúmeras atrocidades que tiveram lugar no século XX. Entre os mais importantes dos primeiros pensadores hostis à "razão moderna" encontram-se Pascal, Burke e os românticos alemães. Mais próximos de nós, os pensamentos de Nietzsche, Heidegger e dos pós-estruturalistas, por um lado, e de Max Weber e Adorno, por outro, são, provavelmente, as mais importantes matrizes contemporâneas dessa desconfiança.

Entre os contemporâneos, são muitos os que, como Zygmunt Bauman, argumentam que os genocídios e massacres do século passado resultaram das concepções modernas da sociedade. Um exemplo: o cientista político e antropólogo norte-americano James Scott afirma que grande parte das tragédias políticas do século XX "agitaram a bandeira do progresso, da emancipação e da reforma" que, segundo ele, caracterizam os tempos modernos.

Recentemente, porém, o historiador alemão Jörg Baberowski pôs esse senso comum em questão no livro Tempos Modernos? (Moderne Zeiten?. Götttingen, 2006), em que apresenta os resultados de um encontro sobre "Guerra e revolução no século XX", que teve lugar em Tübingen, em 2001.

Suas conclusões indicam que, independentemente da modernidade dos pretextos invocados para justificar a violência na União Soviética, na China ou na Alemanha nacional-socialista, a verdade é que "onde quer que a violência se autonomizou e se tornou uma estrutura dominante, os pretextos foram esquecidos. Stálin e Mao não apenas sonharam com o belo e novo mundo, eles vinham do velho mundo e agiam como se pode esperar de déspotas pré-modernos. [...] Não é acidente que o discurso moderno sobre raças e classes tenha levado ao assassinato em massa na Alemanha, na União Soviética e na China, mas não nos Estados Unidos ou na Europa Ocidental".

Baberowski está sem dúvida certo quanto à pré-modernidade desses regimes ditatoriais. Entretanto, ele está errado ao qualificar de modernos os próprios pretextos por eles invocados para fazer o que fizeram. Para explicar por que penso assim, recorro a Immanuel Kant, que pode ser considerado o filósofo clássico da modernidade. "Nossa época", diz ele, na Crítica da Razão Pura, "é propriamente a época da crítica, à qual tudo deve submeter-se. A religião, através da sua santidade, e a legislação, através da sua majestade, querem em comum subtrair-se a ela. Mas então suscitam uma justa suspeição contra si, e não podem aspirar ao respeito sincero que a razão só concede àquilo que consegue suportar a sua investigação livre e pública".

Retenhamos os seguintes pontos: 1) a nossa época, isto é, a modernidade, é a época da crítica 2) a crítica é uma manifestação da razão; 3) a crítica se dá o direito de investigar, de modo irrestrito e público, absolutamente tudo; 4) a crítica não respeita ou endossa coisa alguma que não se submeta ao seu escrutínio; e 5) a crítica é capaz de criticar a si própria (pois a própria "crítica da razão pura" é a crítica exercida pela razão pura à própria razão pura).

Etimologicamente, crítica quer dizer separação, distinção, escolha, seleção, distinção, juízo. É a crítica que separa, por exemplo, a esfera religiosa da esfera secular, separação que consideramos característica da modernidade.
É verdade que, além de ser crítica, a razão é também usada como um instrumento para a construção de sistemas de pensamento: de teorias científicas, tecnologias, obras de arte, conceitos filosóficos, concepções teológicas, ideologias (modernas e antimodernas) e até de religiões.

Contudo, na modernidade, essas mesmas construções da razão instrumental, como tudo o que há, também estão sujeitas a serem criticadas pela própria razão. Pois bem, na medida em que as construções da razão sejam subtraídas à crítica, esta as rejeita. É o caso das ideologias que serviram de pretexto para justificar as violências totalitárias.

Ainda mais grave e incompatível com a crítica é a constituição de impedimentos (como a censura) para o seu exercício. Ora, uma vez que qualquer totalitarismo, mesmo quando tenta justificar-se com argumentos racionalmente construídos, estabelece impedimentos para o exercício da crítica universal, irrestrita e pública -que vimos ser essencial à modernidade- todo totalitarismo é essencialmente anti-moderno.

Antonio Cicero