31.12.08

Ferreira Gullar: "Ano Novo"

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Ano Novo

Meia noite. Fim
de um ano, início
de outro. Olho o céu:
nenhum indício.

Olho o céu:
o abismo vence o
olhar. O mesmo
espantoso silêncio
da Via-Láctea feito
um ectoplasma
sobre a minha cabeça:
nada ali indica
que um ano novo começa.

E não começa
nem no céu nem no chão
do planeta:
começa no coração.

Começa como a esperança
de vida melhor
que entre os astros
não se escuta
nem se vê
nem pode haver:
que isso é coisa de homem
esse bicho
estelar
que sonha
(e luta)



GULLAR, Ferreira. Toda poesia. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1997.

30.12.08

Fernando Ferreira de Loanda: "Madagascar"

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Madagascar


Madagascar é uma gota de licor
meteorito ou anêmona, vagando
por minhas veias e artérias,
formiga-me, é um grito repetido
por inúmeros ecos no meu arcabuço,
é um sonho erodido de tão sonhado.

Os búzios, se os ouço, trazem-me
apelos do Índico, vestígios do sopro
das sereias: há-as, creiam,
só Ulisses e Vasco da Gama resistiram
por surdos que eram à linhagem
das aromáticas consoantes douradas.




De: LOANDA, Fernando Ferreira de. Kuala Lumpur. São Paulo: Massao Ohno, 1991.

29.12.08

Luís Miguel Nava: "Ars poetica"

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Ars poetica


O mar, no seu lugar pôr um relâmpago.




De: NAVA, Luís Miguel. "Onde à nudez". In: Poesia completa. 1979-1994. Organização e posfácio de Gastão Cruz. Prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Lisboa: Dom Quixote, 2002.

25.12.08

Paul Celan: "Lob der Ferne" / "Elogio da distância: traduzido por João Barrento e Y.K. Centeno

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Elogio da distância


Na fonte dos teus olhos
vivem os fios dos pescadores do lago da loucura.
Na fonte dos teus olhos
o mar cumpre a sua promessa.

Aqui, coração
que andou entre os homens, arranco
do corpo as vestes e o brilho de uma jura:

Mais negro no negro, estou mais nu.
Só quando sou falso sou fiel.
Sou tu quando sou eu.

Na fonte dos teus olhos
ando à deriva sonhando o rapto.

Um fio apanhou um fio:
separamo-nos enlaçados.

Na fonte dos teus olhos
um enforcado estrangula o baraço.




Lob der Ferne


Im Quell deiner Augen
leben die Garne der Fischer der Irrsee.
Im Quell deiner Augen
hält das Meer sein Versprechen.

Hier werf ich,
ein Herz, das geweilt unter Menschen,
die Kleider von mir und den Glanz eines Schwures:

Schwärzer im Schwarz, bin ich nackter.
Abtrünnig erst bin ich treu.
Ich bin du, wenn ich ich bin.

Im Quell deiner Augen
treib ich und träume von Raub.

Ein Garn fing ein Garn ein:
wir scheiden umschlungen.

Im Quell deiner Augen
erwürgt ein Gehenkter den Strang.



De: CELAN, Paul. "Mohn und Gedächtnis". In: Sete rosas mais tarde. Antologia poética. Seleção, tradução e introdução de João Barrento e Y.K. Centeno. Lisboa: Cotovia, 1996.

24.12.08

Fernando Pessoa: "Natal"

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NATAL

Nasce um Deus. Outros morrem. A verdade
Nem veio nem se foi: o Erro mudou.
Temos agora uma outra Eternidade,
E era sempre melhor o que passou.

Cega, a Ciência a inútil gleba lavra.
Louca, a Fé vive o sonho do seu culto.
Um novo Deus é só uma palavra.
Não procures nem creias: tudo é oculto.



De: PESSOA, Fernando. "Cancioneiro". In: Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.

23.12.08

Segundo volume de "Humano, demasiado humano", de Nietzsche, traduzido por Paulo César de Souza

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Em comentário sobre que fiz no dia 3/12 sobre uma postagem minha intitulada “Comentários de Aetano sobre Jorge Luís Borges e Fernando Pessoa, e respostas minhas”, de 2/12, cito um trecho Humano, demasiado humano, de Nietzsche, comentando que, infelizmente, a segunda parte desse livro, de onde eu retirara a citação, ainda não havia sido traduzida. Pois bem, hoje mesmo recebi da Companhia das Letras um exemplar da tradução dessa segunda parte, feita pelo nosso grande tradutor de filosofia alemã, Paulo César de Souza. Já li várias páginas e, como eu já esperava, verifiquei que se trata de uma tradução primorosa, que recomendo vivamente.

22.12.08

Joseph Brodsky: "Я был только тем, чего" / "Eu era apenas quanto" : traduzido por Boris Schnaiderman e Nelson Ascher

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Eu era apenas quanto


Eu era apenas quanto
a tua mão tocasse
ou sobre o que inclinavas,
no breu da noite, a face.

Eu era, embaixo, quanto
notavas turvo, apenas:
traços, no início, vagos;
feições, mais tarde, plenas.

Foste quem logo, ardente,
criou-me a sussurrar,
seja à direita, à esquerda,
a concha auricular.

Foste, a agitar cortinas,
quem, na umidade cava
da boca, introduziu-me
a voz que te chamava.

Eu era cego e, vindo,
sumindo-te de mim,
doaste-me a visão.
Fica um vestígio, assim.

E, assim, criam-se mundos
que são postos de lado,
girando, quando prontos,
presente abandonado.

Em meio, pois, de treva
e luz, calor e frio,
prossegue o nosso globo
seu giro no vazio.



Я был только тем, чего


Я был только тем, чего
ты касалась ладонью,
над чем в глухую, воронью
ночь склоняла чело.

Я был лишь тем, что ты
там, внизу, различала:
смутный облик сначала,
много позже - черты.

Это ты, горяча,
ошую, одесную
раковину ушную
мне творила, шепча.

Это ты, теребя
штору, в сырую полость
рта вложила мне голос,
окликавший тебя.

Я был попросту слеп.
Ты, возникая, прячась,
даровала мне зрячесть.
Так оставляют след.

Так творятся миры.
Так, сотворив их, часто
оставляют вращаться,
расточая дары.

Так, бросаем то в жар,
то в холод, то в свет, то в темень,
в мирозданьи потерян,
кружится шар.



De: BRODSKY, Joseph. Quase uma elegia. Tradução de Boris Schnaiderman e Nelson Ascher. Introdução e textos complementares de Nelson Ascher. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1997.

20.12.08

Robert Graves: "In broken images" / "Com imagens quebradas"

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Com imagens quebradas


Ele é rápido, pensando com imagens claras;
Eu sou lento, pensando com imagens quebradas.

Ele se torna obtuso, confiando em suas imagens claras;
Eu me torno agudo, desconfiando das minhas imagens quebradas.

Confiando em suas imagens, ele pressupõe a importância delas;
Desconfiando das minhas imagens, questiono a importância delas.

Pressupondo a importância delas, ele pressupõe o fato;
Questionando a importância delas, questiono o fato.

Quando o fato o decepciona, ele questiona seus sentidos;
Quando o fato me decepciona, aprovo meus sentidos.

Ele continua rápido e obtuso com suas imagens claras;
Eu continuo lento e agudo com minhas imagens quebradas.

Ele numa nova confusão de seu entendimento;
Eu num novo entendimento da minha confusão.



In broken images


He is quick, thinking in clear images;
I am slow, thinking in broken images.

He becomes dull, trusting to his clear images;
I become sharp, mistrusting my broken images.

Trusting his images, he assumes their relevance;
Mistrusting my images, I question their relevance.

Assuming their relevance, he assumes the fact;
Questioning their relevances, I question the fact.

When the fact fails him, he questions his senses;
When the facts fails me, I approve my senses.

He continues quick and dull in his clear images;
I continue slow and clear in my broken images.

He, in a new confusion of his understanding;
I, in a new understanding of my confusion



De: GRAVES, Robert. Poems selected by himself. London: Penguin, 1961.

17.12.08

Donald Hall: "The master"

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O mestre

Onde o poeta pára, o poema
começa. O poema só pede
que o poeta saia do caminho.

O poema se esvazia
para se preencher.

O poema está mais perto do poeta
quando o poeta lamenta
que ele sumiu para sempre.

Quando poeta desaparece
o poema se torna visível.

Que pode o poema escolher
de melhor para o poeta?
Escolherá que o poeta
não escolha por si.





The master

Where the poet stops, the poem
begins. The poem asks only
that the poet get out of the way.

The poem empties itself
in order to fill itself up.

The poem is nearest the poet
when the poet laments
that it has vanished forever.

When the poet disappears
the poem becomes visible.

What may the poem choose,
best for the poet?
It will choose that the poet
not choose for himself.



De: HALL, Donald. White apples and The taste of stone. Selected poems 1946-2006. New York: Houghton Mifflin, 2006.

16.12.08

Johann Wolfgang von Goethe: de "Wilhelm Meisters Lehrjahre"

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Palavras de Therese:


Simplesmente não consigo compreender como é que se pode acreditar que Deus fale conosco através de livros e de histórias. Se o mundo não te revela imediatamente de que modo se relaciona contigo, se teu coração não te diz o que deves a ti próprio e aos outros, jamais o farão os livros, que na verdade só servem para dar nomes aos nossos erros.




De: GOETHE, Johann Wolfgang von. Wilhelm Meisters Lehrjahre. Buch VII. München: DTV, 1988.

15.12.08

Cioran: sobre Nietzsche

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Ainda jovens, exercitamo-nos na filosofia, menos para nela buscar uma visão que um estimulante; encarniçamo-nos com as idéias, adivinhamos o delírio que as produziu, sonhamos imitá-lo e exagerá-lo. A adolescência se compraz com o malabarismo das altitudes; num pensador, ela ama o saltimbanco; em Nietzsche, amamos Zaratustra, suas poses, sua clowneria mística, verdadeira feira dos cumes...

Sua idolatria da força deriva menos de um esnobismo evolucionista que de uma tensão interior projetada para o exterior, de uma embriaguez que interpreta o devir e o aceita. Disso resultaria uma imagem falsa da vida e da história. Mas era preciso passar por lá, pela orgia filosófica, pelo culto da vitalidade. Os que se recusaram a fazê-lo não conhecerão jamais a recaída, o antípoda e os trejeitos desse culto: ficarão fechados às fontes do engano.

Tínhamos com Nietzsche acreditado na perenidade dos transes; graças à maturidade do nosso cinismo, fomos mais longe que ele. A idéia do super-homem não nos parece mais que uma elucubração; ela nos dava a impressão de ser tão exata quanto um dado da experiência. Assim se esvaece o encantador da nossa juventude. Mas quem dele – se ele foi muitos – permanece ainda? É o especialista em degradações, o psicólogo, psicólogo agressivo, não somente observador como os moralistas. Escruta como inimigo e se cria inimigos. Mas seus inimigos, tira-os de si, como os vícios que denuncia. Encarniça-se contra os fracos? É que faz introspecção; e quando ataca a decadência, descreve o seu estado. Todos os seus ódios vão indiretamente contra si próprio. Suas fraquezas, ele as proclama e as eleva a ideal; se ele se execra, quem sofre é o cristianismo ou o socialismo. Seu diagnóstico do niilismo é irrefutável: é que ele mesmo é niilista, e que o confessa. Panfletário amoroso de seus adversários, não conseguiria suportar-se se não tivesse consigo combatido contra si, se não tivesse colocado suas misérias em outro lugar, nos outros: vingou-se neles do que ele era. Tendo praticado a psicologia como herói, propõe, aos apaixonados pelo Inextricável, uma diversidade de impasses.

Medimos sua fecundidade pelas possibilidades que nos oferece de renegá-lo continuamente sem esgotá-lo. Espírito nômade, ele sabe variar seus desequilíbrios. Em todas as coisas, sustentou o pró e o contra: espalhar-se em múltiplos destinos é o procedimento daqueles que se entregam à especulação por não conseguirem escrever tragédias. – De todo modo, exibindo suas histerias, Nietzsche nos livrou do pudor das nossas: suas misérias foram-nos salutares. Ele abriu a época dos “complexos”.


De: CIORAN. "L'escroc du gouffre". In: Syllogismes de l'amertume. Paris: Folio, 1980.

14.12.08

A autonomia da arte

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 13 de dezembro:


A autonomia da arte

Lançado neste ano no Brasil, o livro de Peter Bürger "Teoria da Vanguarda" (Cosac Naify) afirma que o conceito de autonomia da arte não passa de uma categoria ideológica burguesa. Segundo ele, é a separação relativa na sociedade burguesa entre, por um lado, a obra de arte, e, por outro lado, a prática da vida, que favorece a extrapolação para a idéia errônea de que a obra de arte é totalmente independente da sociedade.

Na verdade, são o esteticismo e o formalismo que defendem a independência total da arte em relação à sociedade. Bürger comete o equívoco de confundir a tese da autonomia da arte com o esteticismo ou o formalismo. Por ser um equívoco comum, parece-me importante tentar dissipá-lo.

A fonte do conceito de autonomia da arte é o pensamento estético de Kant. Pois é numa formulação kantiana que está também a origem do equívoco em questão. É que Kant fala da apreciação estética como independente de todo interesse. Isso é comumente interpretado como se significasse que a apreciação estética fosse puramente formal, desprezando conteúdo ou significado.

O que o desinteresse e a autonomia realmente significam, porém, é que aquilo que é objeto de apreciação estética não tem, enquanto tal, nenhuma função prática, moral ou cognitiva. Ora, consideramos que aquilo que não tem função prática, moral ou cognitiva simplesmente não serve para nada.

Sendo assim, praticamente tudo o que fazemos na vida é o oposto da apreciação estética, pois praticamente tudo o que fazemos serve para alguma coisa, ainda que apenas para satisfazer um desejo. Praticamente nada do que fazemos vale, portanto, por si. A própria linguagem funciona como um instrumento através do qual classificamos, isto é, seccionamos o mundo em objetos, para melhor conhecê-lo e usá-lo.

Enquanto objeto de apreciação estética, uma coisa não obedece a essa razão instrumental: enquanto tal, ela não serve para nada, ela vale por si. Assim são as obras de arte tomadas enquanto obras de arte. As hierarquias que entram em jogo nas coisas que obedecem à razão instrumental, isto é, nas coisas de que nos servimos, não entram em jogo nas obras de arte tomadas enquanto tais.

Um retrato numa carteira de identidade serve para identificar seu portador. Um retrato feito por artista como Manet, por exemplo, na medida em que é apreciado esteticamente, jamais tem esse sentido. A identidade do retratado pode até ter alguma relevância, mas não mais do que as demais figuras, o fundo, a luz, a sombra, a composição, os planos, as formas, as linhas, as cores, o tom do quadro, a maneira de todas essas coisas se relacionarem etc. A matéria (tela e tinta) não é menos importante do que as formas; estas não são menos importantes do que o motivo; este não é menos importante do que a identidade do retratado etc. Tudo é relevante; e nenhuma coisa é automaticamente mais relevante que outra. É sem nenhum fim ulterior que a obra de arte mobiliza de maneiras surpreendentes as nossas faculdades, o nosso intelecto, a nossa imaginação e sensibilidade.

Tudo – matérias, formas, significantes, significados –, tudo é relevante para a apreciação estética de uma obra de arte. Ao ler um poema de Brecht, por exemplo, não ponho entre parênteses a política, tal como nele se manifesta; entretanto, a política se converte em apenas um dos elementos através dos quais o julgo: e ela é mediatizada por todos os demais elementos da obra, que, por sua vez, são por ela mediatizados. É nisso que consiste a apreciação estética de uma obra. Isso nada tem a ver com o formalismo ou o esteticismo, pois, longe de excluir qualquer conteúdo social, inclui todos eles.

Na arte, o conteúdo é forma e a forma é conteúdo, e tudo é matéria e tudo é pensamento. Voltando ao quadro de Manet, no final ele não é sobre o retratado, embora o retratado faça parte de tudo o que o quadro é. No fundo, não é o quadro que é sobre coisa alguma: ao contrário, o quadro é aquilo sobre o qual nós pensaremos e falaremos. Longe de existir para falar sobre um objeto, a obra de arte existe para ser um objeto que valerá por si, de modo que, sem nenhuma finalidade ulterior, isto é, desinteressadamente, teremos prazer de pensar sobre ela, e de pensar sobre ela com todas as nossas faculdades, e até com nossos corpos.

Sendo assim, a luta contra a autonomia da arte tem por fim submeter também a arte à razão instrumental, isto é, tem por fim eliminar também da arte a dimensão em virtude da qual, sem servir para nada, ela vale por si. Trata-se, em suma, da luta pelo empobrecimento do mundo.

11.12.08

Robinson Jeffers: "Time will come"

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Chegará um tempo, sem dúvida,
em que também o sol morrerá; os planetas congelarão e o ar sobre eles;
gazes congelados, com flocos de ar
serão a poeira:
que nenhum vento jamais bulirá: essa poeira mesma a cintilar à luz baixa dos astros
é o vento morto, o corpo branco do vento.
Também a galáxia morrerá; o brilho da Via Láctea, nosso universo, todos os astros que têm nomes estão mortos.
Vasta é a noite. Cresceste tanto, querida noite, andando por teus salões vazios, tão alta!


Time will come, no doubt,
When the sun too shall die; the planets will freeze, and the air on them;
frozen gases, white flakes of air
will be the dust:
which no wind ever will stir; this very dust in dim starlight glistening
is dead wind, the white corpse of wind.
Also the galaxy will die; the glitter of the Milky Way, our universe, all the stars that have names are dead.
Vast is the night. How you have grown, dear night, walking your empty halls, how tall!



JEFFERS, Robinson. The double axe and other poems. New York: Liveright, 1977.

Ludwig Wittgenstein: de "Zettel"

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455. (O filósofo não é cidadão de uma comunidade de pensamento. É isso que faz dele um filósofo.)


455. (Der Philosoph ist nicht Bürger einer Denkgemeinde. Das ist, was ihn zum Philosophen macht.)



De: WITTGENSTEIN, Ludwig. Zettel. ANSCOMBE, G.E.M. e WRIGHT, G.H. von (orgs.). Berkeley: University of California Press, 1967.

8.12.08

Cioran: "Genealogia do fanatismo"

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Genealogia do fanatismo


Em si mesma, toda idéia é neutra ou deveria sê-lo; mas o homem a anima, projeta nela suas chamas e suas demências; impura, transformada em crença, insere-se no tempo, toma a forma de acontecimento: a passagem da lógica à epilepsia está consumada... Assim nascem as ideologias, as doutrinas e as farsas sangrentas.

Idólatras por instinto, convertemos em incondicionados os objetos de nossos sonhos e de nossos interesses. A história não passa de um desfile de falsos Absolutos, uma sucessão de templos elevados a pretextos, um aviltamento do espírito ante o Improvável. Mesmo quando se afasta da religião o homem permanece submetido a ela; esgotando-se em forjar simulacros de deuses, adota-os depois febrilmente: sua necessidade de ficção, de mitologia, triunfa sobre a evidência e o ridículo. Sua capacidade de adorar é responsável por todos os seus crimes: o que ama indevidamente um deus obriga os outros a amá-lo, na espera de exterminá-los se se recusam. Não há intolerância, intransigência ideológica ou proselitismo que não revelem o fundo bestial do entusiasmo. Que perca o homem sua faculdade de indiferença: torna-se um assassino virtual; que transforme sua idéia em deus: as conseqüências são incalculáveis. Só se mata em nome de um deus ou de seus sucedâneos: os excessos suscitados pela deusa Razão, pela idéia de nação, de classe ou de raça são parentes dos da Inquisição ou da Reforma. As épocas de fervor se distinguem pelas façanhas sanguinárias. Santa Teresa só podia ser contemporânea dos autos-de-fé e Lutero do massacre dos camponeses. Nas crises místicas, os gemidos das vítimas são paralelos aos gemidos do êxtase... patíbulos, calabouços e masmorras só prosperam à sombra de uma fé -- dessa necessidade de crer que infestou o espírito para sempre. O diabo empalidece comparado a quem dispõe de urna verdade, de sua verdade. Somos injustos com os Neros ou com os Tibérios: eles não inventaram o conceito de herético: foram apenas sonhadores degenerados que se divertiam com os massacres. Os verdadeiros criminosos são os que estabelecem uma ortodoxia no plano religioso ou político, os que distinguem entre o fiel e o cismático.

No momento em que nos recusamos a admitir o caráter intercambiável das idéias, o sangue corre... Sob as resoluções ergue-se um punhal; os olhos inflamados pressagiam o crime. Jamais o espírito hesitante, afligido pelo hamletismo, foi pernicioso: o princípio do mal reside na tensão da vontade, na inaptidão para o quietismo, na megalomania prometéica de uma raça que se arrebenta de tanto ideal, que explode sob suas convicções e, que, por haver-se comprazido em depreciar a dúvida e a preguiça — vícios mais nobres do que todas as suas virtudes —, embrenhou-se em uma via de perdição, na história, nesta mescla indecente de banalidade e apocalipse... Nela as certezas abundam: suprima-as e suprimirá sobretudo suas conseqüências: reconstituirá o paraíso. O que é a Queda senão a busca de uma verdade e a certeza de havê-la encontrado, a paixão por um dogma, o estabelecimento de um dogma? Disso resulta o fanatismo — tara capital que dá ao homem o gosto pela eficácia, pela profecia e pelo terror —, lepra lírica que contamina as almas, as submete, as tritura ou as exalta... Só escapam a ela os céticos (ou os preguiçosos e os estetas), porque não propõem nada, porque — verdadeiros benfeitores da humanidade — destroem os preconceitos e analisam o delírio. Sinto-me mais seguro junto de um Pirro do que de um São Paulo, pela razão de que uma sabedoria de boutades é mais doce do que uma santidade desenfreada. Em um espírito ardente encontramos o animal de rapina disfarçado; não poderíamos defender-nos demasiado das garras de um profeta... Quando elevar a voz, seja em nome do céu, da cidade ou de outros pretextos, afaste-se dele: sátiro de nossa solidão, não perdoa que vivamos aquém de suas verdades e de seus arrebatamentos; quer fazer-nos compartilhar de sua histeria, de seu bem, impô-lo a nós e desfigurar-nos. Um ser possuído por uma crença e que não procurasse comunicá-la aos outros seria um fenômeno estranho à terra, onde a obsessão da salvação torna a vida irrespirável. Olhe à sua volta: por toda parte larvas que pregam; cada instituição traduz uma missão; as prefeituras têm seu absoluto como os templos; a administração, com seus regulamentos — metafísica para uso de macacos... Todos se esforçam por remediar a vida de todos; aspiram a isso até os mendigos, inclusive os incuráveis: as calçadas do mundo e os hospitais transbordam de reformadores. A ânsia de tornar-se fonte de acontecimentos atua sobre cada um como uma desordem mental ou uma maldição intencional. A sociedade é um inferno de salvadores! O que Diógenes buscava com sua lanterna era um indiferente.

Basta-me ouvir alguém falar sinceramente de ideal, de futuro, de filosofia, ouvi-lo dizer "nós" com um tom de segurança, invocar os "outros" e sentir-se seu intérprete, para que o considere meu inimigo. Vejo nele um tirano fracassado, quase um carrasco, tão odioso quanto os tiranos e os carrascos de alta classe. É que toda fé exerce uma forma de terror, ainda mais temível quando os "puros" são seus agentes. Suspeita-se dos espertos, dos velhacos, dos farsantes; no entanto, não poderíamos atribuir-lhes nenhuma das grandes convulsões da história; não acreditando em nada, não vasculham nossos corações, nem nossos pensamentos mais íntimos; abandonam-nos à nossa indolência, ao nosso desespero ou à nossa inutilidade; a humanidade deve a eles os poucos momentos de prosperidade que conheceu: são eles que salvam os povos que os fanáticos torturam e que os "idealistas" arruínam. Sem doutrinas só possuem caprichos
e interesses, vícios complacentes, mil vezes mais suportáveis que os estragos provocados pelo despotismo dos princípios; porque todos os males da vida provêm de uma "concepção da vida". Um homem político completo deveria aprofundar-se nos sofistas antigos e tomar aulas de canto; e de corrupção...

O fanático é incorruptível: se mata por uma idéia, pode igualmente morrer por ela; nos dois casos, tirano ou mártir, é um monstro. Não existem seres mais perigosos do que os que sofreram por uma crença: os grandes perseguidores se recrutam entre os mártires cuja cabeça não foi cortada. Longe de diminuir o apetite de poder, o sofrimento o exaspera; por isso o espírito sente-se mais à vontade na companhia de um fanfarrão do que na de um mártir: e nada o repugna tanto como este espetáculo onde se morre per urna idéia... Farto do sublime e de carnificinas, sonha com um tédio provinciano em escala universal, com uma História cuja estagnação seria tal que a dúvida representaria um acontecimento e a esperança uma calamidade...




De: CIORAN. Breviário de decomposição. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.

7.12.08

Lêdo Ivo: "Valsa fúnebre de Hermengarda

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Valsa fúnebre de Hermengarda

Eis-me junto à tua sepultura, Hermengarda,
para chorar a carne pobre e pura que nenhum de nós viu apodrecer.

Outros viriam lúcidos e enlutados,
porém eu venho bêbado, Hermengarda, eu venho bêbado.
E se amanhã encontrarem a cruz de tua cova jogada ao chão
não foi a noite, Hermengarda, nem foi o vento.
Fui eu.

Quis amparar a minha embriaguez à tua cruz
e rolei ao chão onde repousas
coberta de boninas, triste embora.

Eis-me junto à tua cova, Hermengarda,
para chorar o nosso amor de sempre.
Não é a noite, Hermengarda, nem é o vento.
Sou eu.




De: IVO, Lêdo. "As imaginações". In: Poesia completa (1940-2004). Rio de Janeiro: Topbooks, 2004.

5.12.08

Angela Melim: "Meu pai nos abandonou"

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Meu pai nos abandonou.
Minha mãe casou e mudou.
Vovó morreu.
Os irmãos sumiram no mundo
ou submundo.
Sem explicação
Yvonne nunca mais falou comigo
e, para Ronaldo,
sou fantasma do passado.
Vejo meus filhos já voando.
Nem um pássaro na mão.



De: MELIM, Angela. Possibilidades. Rio de Janeiro, agosto de 2006.

3.12.08

Alteração na tradução do poema "Remordimiento" / "Remorso"

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Uma falha da minha tradução resultou numa negligência interpretativa. É que traduzi “naderias” por “ninharias”. Ora, “naderias” vem de “nada”, enquanto “ninharias” vem de “niño”, isto é, “menino”, “criança”. A diferença não é inconsequente. Percebendo o erro, pensei em traduzir “naderias”, palavra que não existe em português, por “nonadas”. Mas “nonada” inevitavelmente traz o mundo de Guimarães Rosa à mente, o que normalmente não é ruim, mas não é adequado ao mundo do poema em questão. Além disso, o “nada” está muito “pesado” em “nonada”, enquanto que parece leve, quase leviano, em “naderia”. Como penso que todo o vocabulário latino – e, em particular, o das línguas latinas ibéricas – é praticamente todo, se quisermos, também nosso (feitas as devidas adaptações que, em alguns casos, são necessárias), resolvi propor a incorporação do substantivo “naderia” ao português, uma vez que ele é imediatamente inteligível pelo leitor. Feita essa alteração, corrigi, na resposta às observações do Aetano, também a negligência interpretativa mencionada acima.

2.12.08

Lançamento de "Poemas esparsos" de Vinícius de Moraes, no Instituto Moreira Salles, quinta-feira, 4 de dezembro, 19:30h

Comentários de Aetano sobre Jorges Luís Borges e Fernando Pessoa, e respostas minhas

Dois comentários de Aetano, um sobre o poema de Borges, e outro sobre o do Alberto Caeiro – em ambos ele se refere a Nietzsche –, provocaram-me a escrever respostas um pouco mais longas do que o normal. Achei que tanto os comentários como as respostas mereciam ser postadas aqui.

Começo com o segundo, sobre o poema do Borges:

Aetano disse:

"Não cometamos covardia em relação a nossos atos! Não os abandonemos depois de fazê-los! - É indecente o remorso."
Nietzsche. "Crepúsculo dos ídolos", p. 10.
Grato pelo poema, anyway.
@eta

Minha resposta:

Aetano,

Aparentemente, você pretende usar o aforismo de Nietzsche para criticar o poema do Borges. Para mim, isso é o exemplo de uma confusão que deve ser evitada. O aforismo consiste numa proposição que se quer verdadeira. Ela diz que o remorso é indecente, pois representa uma espécie de deserção do ato a que se refere, logo, uma covardia.

O poema não deve ser lido como uma proposição, pois ele consiste num objeto artístico, e um objeto artístico de verdade é muito mais complexo que qualquer proposição. Ele não está, de fato, afirmando coisa alguma. Quem é o sujeito do poema? O Borges? É provável que não. Trata-se de um personagem. Será que Borges concorda com ele? Certamente há ironia no poema. O “pecado” que o sujeito do poema cometeu é o oposto do “pecado” religioso, que desvaloriza esta vida em nome da “outra”. Ele diz não ter sido feliz aqui na terra. Por que? Porque a vida que seus pais – e que o senso comum considera uma vida feliz – não foi a vida que ele livremente escolheu, não foi a vida que o fascinou e fisgou, isto é a vida de artista. Normalmente, julgamos feliz aquele que faz o que quer. Aqui, porém, o artista se considera infeliz porque fez o que quis, e não o que, segundo os outros, traria a felicidade. É que o sujeito do poema é artista, e justamente o artista (embora não só ele) se fascina pelas vidas que não teve, que não escolheu, que poderia ter escolhido. Assim, muitas vezes ele é capaze de questionar as escolhas que fez, pois elas sempre representam um empobrecimento das infinitas possibilidades que a vida lhe abria antes que elas tivessem sido feitas. Essa é “sombra” que acompanha todos nós, quer a vejamos, quer não. O sujeito do poema, artista, vê a sombra, e reconsidera sua vida. Tal é o Leitmotif da vida de um poeta como Valéry, que observou uma vez: "Que me faz o que já fiz? Há algo mais burro que o remorso: é o contentamento".

“Remorso” é, etimologicamente, “morder de novo”, como o título original do poema: “Remordimiento”, remordimento. O “remorso” aqui é o ato pelo qual o artista incessantemente tenta morder e remorder, através da sua arte, aquilo que não mordeu na vida. Não se trata, ao contrário do remorso de que fala Nietzsche, de renegar o que fez da vida, mas de querer provar também até daquilo que ele não fez dela.

Um último detalhe: o poeta diz ter aplicado sua mente “às simétricas porfias / da arte, que entretece naderias”. Trata-se de ninharias, do ponto de vista dos que o queriam ver feliz. Essas ninharias se opõem, na cabeça deles, às coisas substanciais, às coisas que têm valor (e que são feitas pelos homens “valentes”, entre os quais o artista não se conta), às atividades práticas e positivas que eles julgam trazer a felicidade. Mas a palavra “naderia” vem de “nada”. O artista entretece naderias, coisas vindas do nada, à sua arte. Assim são as considerações do poeta sobre o que ele poderia ter sido mas não foi, sobre o que não mais será, sobre o não ser da felicidade que lhe propunham, sobre o não ser entrelaçado à sua própria vida. Mas só da vida dele? Não será a vida de todo homem, pela sua própria mortalidade, pela sua própria finitude, entrelaçada ao nada? Não faz parte de toda vida humana a sombra do que não foi, do que não fez, do que poderia ter sido ou feito, do que não pode mais ser ou fazer? Nenhuma vida humana é pura positividade, sem traço da negatividade, do nada: ao contrário, toda vida humana é inteiramente entrelaçada com o nada. É, portanto, uma espécie de mentira a tentativa de reduzir a “ninharias” as “naderias” do artista. Trata-se de uma espécie de tentativa de recalcar o nada, uma incapacidade de aceitar a sombra. Mas, nesse caso, é o artista, que enfrenta a sombra, que é verdadeiramente valente. Paradoxalmente, então, a afirmação da vida do homem "positivo" é superficial, pois, escamoteando a negatividade, não afirma toda a vida; e é o poema intitulado “Remorso”, que incorpora em sua própria tessitura também a sombra e o nada, e tanto o que é quanto o que poderia ter sido, que constitui uma afirmação trágica porém profunda da vida.

É claro que o que acabo de dizer é apenas uma das muitas leituras que esse poema oferece. Comparado com ele, infinitamente profundo e rico, o aforismo de Nietzsche é superficial e pobre. Ao dizer isso não pretendo, de modo nenhum, dizer que Nietzsche fosse superficial ou pobre. Ele era freqüentemente profundo e rico. É a poesia que é mais profunda e rica do que as proposições filosóficas.

Antonio Cicero


Outro comentário do Aetano, este sobre o poema do Alberto Caeiro:

Há pouco tempo procurei saber da influência de Nietzsche na poesia de Pessoa, mas não encontrei nada (nem continuei a busca). Mas há muito do "profeta sem morada" na poesia de Pessoa. Seria possível postar textos de Nietzsche que guardam grande semelhança com esse poema de Caeiro, por exemplo, e reconhecer em ambos (textos e poema) um ataque a Kant e à sua "coisa em si". Mais. Seria possível entender o presente poema como uma negação de todo o IDEAL, de toda METAFÍSICA, enfim, de toda idéia que divida o mundo em duas realidades distintas, quais sejam, essência e aparência.
Grato pelo espaço.
@eta.

Minha resposta:

Aetano,

Fernando Pessoa de fato leu Nietzsche, mas é muito crítico em relação a ele. Algumas críticas me parecem perfeitas, outras nem tanto. Ele afirma, por exemplo:

“‘A alegria’, diz Nietzsche, ‘quer eternidade, quer profunda eternidade’. Não é nem nunca foi assim: a alegria não quer nada, e é por isso que é alegria. A dor, essa, é o contrário da alegria, como a concebia Nietzsche: quer acabar, quer não ser. O prazer, porém, quando o concebemos fora da relação essencial com a alegria ou com a dor, como o concebe o autor deste livro, esse, sim, quer eternidade; porém quer a eternidade num só momento”.

De: PESSOA, Fernando. “Antônio Botto e o ideal estético em Portugal” (1922). In: Textos de Crítica e de Intervenção. Lisboa: Ática, 1980.


Outro trecho:

“O ódio de Nietzsche ao cristismo aguçou-lhe a intuição nestes pontos. Mas errou, porque não era em nome do paganismo greco-romano que ele erguia o seu grito, embora o cresse; era em nome do paganismo nórdico dos seus maiores. E aquele Diónisos, que contrapõe a Apolo, nada tem com a Grécia. É um Baco alemão. Nem aquelas teorias desumanas, excessivas tal qual como as cristãs, embora em outro sentido, nada devem ao paganismo claro e humano dos homens que criaram tudo o que verdadeiramente subsiste, resiste e ainda cria adentro do nosso sistema de civilização.”

De: PESSOA, Fernando. “Prefácio de Ricardo Reis”. In: Páginas íntimas e de auto-interpretação. Lisboa: Ática, 1996.

E um trecho um pouco mais forte:

“O próprio Nietzsche asseverou que uma filosofia não é senão a expressão de um temperamento.
Não é assim, suficientemente. As teorias de um filósofo são a resultante do seu temperamento e da sua época. São o efeito intelectual da sua época sobre o seu temperamento. Outra coisa não podia suceder (ser).
Assim, pois, a filosofia de Friedrich Nietzsche é a resultante do seu temperamento e da sua época. O seu temperamento era o de um asceta e de [um] louco. A sua época no seu país era de materialidade e de força. Resultou fatalmente uma teoria onde um ascetismo louco se casa com uma (involuntária que fosse) admiração pela força e pelo domínio. Resulta uma teoria onde se insiste na necessidade de um ascetismo e na definição desse ascetismo como um ascetismo de força e de domínio. Donde a assumpção da atitude cristã da necessidade de dominar os seus instintos, tornada aqui - mercê da contribuição fornecida pela loucura do autor - a necessidade de dominar toda a espécie de instintos, incluindo os bons, torturando a própria alma, o próprio temperamento (noção delirante).”

De: PESSOA, Fernando. Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1966.

Antonio Cicero

1.12.08

Jorge Luis Borges: "El remordimiento" / "O remorso"

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El remordimiento

He cometido el peor de los pecados
Que un hombre puede cometer. No he sido
Feliz. Que los glaciares del olvido
Me arrastren y me pierdan, despiadados.
Mis padres me engendraron para el juego
Arriesgado y hermoso de la vida,
Para la tierra, el agua, el aire, el fuego.
Los defraudé. No fui feliz. Cumplida
No fue su joven voluntad. Mi mente
Se aplicó a las simétricas porfías
Del arte, que entreteje naderías.
Me legaron valor. No fui valiente.
No me abandona. Siempre está a mi lado
La sombra de haber sido un desdichado.




O remorso

Cometi o pior dos pecados
Que um homem pode cometer. Não fui
Feliz. Que os glaciares do esquecimento
Me arrastem e me percam, desapiedados.
Meus pais me engendraram para o jogo
Arriscado e formoso da vida,
Para a terra, a água, o ar, o fogo.
Defraudei-os. Não fui feliz. Cumprida
Não foi sua jovem vontade. Minha mente
Se aplicou às simétricas porfias
Da arte, que entretece naderias.
Legaram-me coragem. Não fui valente.
Não me abandona. Sempre está a meu lado
A sombra de ter sido um desgraçado.




De: BORGES, Jorge Luís. "La moneda de hierro". In: Obras completas II: 1975-1985. Buenos Aires, 1989.

30.11.08

Fernando Pessoa / Alberto Caeiro: "Há metafísica bastante em não pensar em nada"

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Há metafísica bastante em não pensar em nada. (s.d.)

V

Há metafísica bastante em não pensar em nada.

O que penso eu do Mundo?
Sei lá o que penso do Mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.

Que ideia tenho eu das coisas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).

O mistério das coisas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o Sol
E a pensar muitas coisas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o Sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do Sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do Sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.

Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?

«Constituição íntima das coisas»...
«Sentido íntimo do Universo»...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em coisas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.

Pensar no sentido íntimo das coisas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.

O único sentido íntimo das coisas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.

Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!

(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as coisas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.

E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?),
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.



De PESSOA, Fernando. "Ficções do interlúdio: Poemas completos de A. Caeiro". In: Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.

26.11.08

Fernando Pessoa: "Pobre velha música!"

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[90]

Pobre velha música!
Não sei por que agrado
Enche-se de lágrimas
Meu olhar parado.

Recordo outro ouvir-te.
Não sei se te ouvi
Nessa minha infância
Que me lembra em ti.

Com que ânsia tão raiva
Quero aquele outrora!
E eu era feliz? Não sei:
Fui-o outrora agora.




De: PESSOA, Fernando. "Cancioneiro". In: Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.

25.11.08

Fernando Pessoa: "Dizem?"

Já que me encontro em Lisboa, onde devo fazer a conferência de encerramento do Congresso Internacional Fernando Pessoa, resolvi aqui postar, até o meu regresso ao Brasil, poemas desse poeta imenso.





[193]


Dizem?
Esquecem.

Não dizem?
Disseram.

Fazem?
Fatal.
Não fazem?
Igual.

Por que
esperar?
-- Tudo é
sonhar.




De: PESSOA, Fernando. "Cancioneiro". In: Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.

22.11.08

Fernando Pessoa / Alberto Caeiro: "Só a natureza é divina, e ela não é divina..."

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XXVII

Só a Natureza é divina, e ela não é divina...

Se falo dela como de um ente
É que para falar dela preciso usar da linguagem dos homens
Que dá personalidade às cousas,
E impõe nome às cousas.

Mas as cousas não têm nome nem personalidade:
Existem, e o céu é grande e a terra larga,
E o nosso coração do tamanho de um punho fechado...

Bendito seja eu por tudo quanto sei.
Gozo tudo isso como quem sabe que há o Sol.



De: PESSOA, Fernando. "Ficçoes de interlúdio: Poemas completos de Alberto Caeiro". In: Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.

20.11.08

W.H. Auden: "Funeral blues" / "Blues fúnebre" (tradução de Nelson Ascher)

Nelson Ascher traduziu "Funeral blues", de W.H. Auden, para a Folha de São Paulo, em janeiro de 1995. Essa primeira versão se encontra no seu livro Poesia alheia (Rio de Janeiro: Imago, 1998). Recentemente, ela a reviu e modificou. Publico aqui a nova, esplêndida e inédita versão, e, em seguida, o poema original:



BLUES FÚNEBRE


Detenham-se os relógios, cale o telefone,
jogue-se um osso para o cão não ladrar mais,
façam silêncio os pianos e o tambor sancione
o féretro que sai com seu cortejo atrás.

Aviões acima, circulando em alvoroço,
escrevam contra o céu o anúncio: ele morreu.
Pombas de luto ostentem crepe no pescoço
e os guardas ponham luvas negras como breu.

Ele era norte, sul, leste, oeste meus e tanto
meus dias úteis quanto o meu fim-de-semana,
meu meio-dia, meia-noite, fala e canto.
Julguei o amor eterno: quem o faz se engana.

Apaguem as estrelas: já nenhuma presta.
Guardem a lua. Arriado, o sol não se levante.
Removam cada oceano e varram a floresta.
Pois tudo mais acabará mal de hoje em diante.




FUNERAL BLUES

Stop all the clocks, cut off the telephone,
prevent the dog from barking with a juicy bone,
silence the pianos and, with muffled drums,
bring out the coffin, let the mourners come.

Let airplanes circle moaning overhead
scribbling on the sky the message: he's dead.
Put crepe-bows round the white necks of the public doves,
let the traffic policemen wear black cotton gloves.

He was my North, my South, my East and West,
my working week, my Sunday rest,
my noon, my midnight, my talk, my song.
I thought that love would last forever; I was wrong.

The stars are not wanted now, put out every one.
Pack up the moon, dismantle the sun.
Pull away the ocean and sweep up the wood.
For nothing now can ever come to any good.

19.11.08

Machado de Assis: "A Carolina"

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A Carolina

Querida, ao pé do leito derradeiro
Em que descansas dessa longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
Que, a despeito de toda a humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs o mundo inteiro.

Trago-te flores – restos arrancados
Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa e separados.

Que eu, se tenho nos olhos malferidos
Pensamentos de vida formulados,
São pensamentos idos e vividos.



De: ASSIS, Machado de. "Poesias coligidas: Dispersas". In: Obra completa, vol.3. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1973.

18.11.08

Jorge Salomão: "Perfil"

.


PERFIL*


acordo para a noite
mítica e misteriosa do mundo
existe tanta coisa
em cada coisa
os cinzeiros cheios de baganas
o fogo que se acende
e se apaga
nos lábios escrito desejo
certos delirios
como luz
no meio do dia
a casa está limpa
mas parece
uma cratera de um vulcão
uma armadilha
onde foi capturada uma rã
estou como um deus
fantasiado
e nu
num carrossel a girar
num tempo infinitamente longo
as paredes
desaparecem a cada passo
alguns fenônemos
harmonias
tensões
nada se sabe
dança-se tudo
ao brilho do sol
procuro a mim mesmo
na iluminada janela
do pensar
no esconderijo
e lá a natureza ama ficar
tudo é verso
reverso em si
e essas misturas
que sempre tenho que agitar
traçando sózinho
caminhos
abrindo portas
para o desconhecido
como chama
que se move
percebendo contrários
inquieto
melhor que instalar-se no banal




* ver clip no www.youtube.com
nome perfil / Jorge Salomão

16.11.08

João Cabral e o verso livre

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 15 de novembro:



João Cabral e o verso livre

Em 1953, o poeta João Cabral de Melo Neto declarou em entrevista a seu colega, Vinícius de Moraes: “Acho o verso livre uma aquisição fabulosa e que é bobagem qualquer tentativa de volta às formas preestabelecidas. Abrir mão das aquisições da poesia moderna seria para mim como banir a poesia do mundo moderno”.

Trinta e cinco anos depois, em 1988, ele afirmava a Mário César Carvalho que “uma das coisas fatais da poesia foi o verso livre. No tempo em que você tinha que metrificar e rimar, você tinha que trabalhar seu texto. Desde o momento em que existe o verso livre, todo o mundo acha de descrever a dor de corno dele corno se fosse um poema. No tempo da poesia metrificada e rimada, você tinha que trabalhar e tirava o inútil”.

Como se explica tal inconsistência? Teria João Cabral mudado radicalmente de idéia sobre esse assunto? Certamente houve uma mudança. Creio, porém, que, por trás de uma mudança apenas superficial, encontra-se a profunda coerência da sua concepção de poesia.

Cabral costumava dividir os poetas em dois grupos. O primeiro é o daqueles para quem tudo o que não é espontâneo – logo, tudo o que dá trabalho, tudo o que é difícil – é falso. O segundo, no qual ele mesmo se colocava, é o daqueles para quem tudo o que é espontâneo – logo, tudo o que dispensa o trabalho, tudo o que é fácil – é falso. Para ele, o fácil e espontâneo jamais passava de eco ou repetição inconsciente de vozes alheias. Como se verá, tanto ao defender o verso livre em 1953 quanto ao atacá-lo, em 1988, ele estava tomando posição contra o fácil, espontâneo e repetitivo, e a favor do difícil, trabalhoso e único em poesia.

“O poeta”, disse Cabral uma vez em entrevista a Arnaldo Jabor, “é aquele que nunca aprende a escrever”. Poderíamos também dizer que o poeta é aquele que está sempre aprendendo a escrever. Nas palavras do famoso “O lutador”, de Drummond: “Lutar com palavras / É a luta mais vã. / Entanto lutamos / Mal rompe a manhã”. O poeta luta para dar forma a um poema, isto é, a um objeto estético memorável – ou seja, a um objeto que mereça existir em virtude de seus próprios méritos, independentemente de servir ou não servir para nada ulterior – feito de palavras.

A predileção pelo fácil e espontâneo pode manifestar-se de dois modos. Em primeiro lugar, ela pode manifestar-se como o desprezo por todo trabalho e toda técnica. A “poesia” fica assim reduzida à facilidade de uma expressão pessoal em que a língua é usada, não para dar forma a um objeto de palavras, mas para dizer alguma coisa. Assim, ela exprime, espelha ou repete a vida cotidiana. Não ocorre a luta com as palavras ou a produção de um objeto estético memorável.

Em segundo lugar, a predileção pelo fácil, espontâneo e repetitivo também se manifesta como o artesanato da escrita tradicional de versos. Através de estudo e exercício, o versejador é capaz de adquirir destreza em, entre outras coisas, escrever redondilhas ou decassílabos, rimar versos, compor em formas fixas etc. Com a prática, ele aprende, por exemplo, a improvisar sonetos adequados às mais diversas ocasiões. Para o versejador que atingiu mestria em determinadas técnicas, nada parece mais fácil ou espontâneo do que fazer um “poema”, através da repetição do que é convencionalmente “poético”. Tampouco nesse caso ocorre a luta com as palavras ou a produção de um objeto estético memorável.

No fundo, o problema de Cabral era evitar todo tipo de facilidade, e não, ao contrário do que as duas citações do início deste artigo possam ter levado a crer, opor-se ao verso metrificado ou ao verso livre. Cabral achou um modo próprio de driblar tanto a facilidade dos versos livres e sem rimas quanto a facilidade do uso convencional das técnicas tradicionais. Quando jovem, ele usava versos livres, mas de um modo que – como uma vez explicou a Carlos Carvalhosa – lhe desse tanto trabalho quanto como se fosse metrificado. Mais tarde, passou a usar métrica, mas procurando evitar os ritmos associados a ela; e, embora empregasse rimas, não as fazia perfeitas, mas toantes. Naturalmente, tais soluções foram úteis para ele, mas não são universalizáveis. Elas indicam, entretanto, que, na prática, ele não estava tão preocupado em rejeitar nem procedimentos tradicionais nem procedimentos experimentais, e que seria capaz de usar uns ou outros, na medida em que aumentassem, e não na medida em que aliviassem, a dificuldade do seu trabalho.

Frente às tendências contemporâneas a dissolver e diluir a poesia e a arte, talvez os poetas – e os artistas em geral – devam refletir sobre essas idéias de Cabral. Longe de rejeitar toda regra ou de apelar a regras que facilitem a elaboração ou a recepção da obra, será talvez mais produtivo que o artista imponha a si mesmo determinadas condições – pouco importa se por ele inventadas ou se tomadas de empréstimo à tradição – que, dificultando o seu trabalho, tomem-lhe mais tempo e exijam dele um maior esforço de pensamento, elaboração e criatividade.

14.11.08

Cassiano Ricardo: "A outra vida"

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A outra vida


Não espero outra vida, depois desta.
Se esta é má
Por que não bastará aos deuses, já,
A pena que sofri?
Se é boa a vida, deixará de o ser,
Repetida.




RICARDO, Cassiano. O arranhacéu de vidro. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1956.

13.11.08

Hermann Hesse: "Über die Felder..." / "Pelos Campos..."

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Pelos campos...

Pelos céus as nuvens passam
Pelos campos passeia o vento
Por onde vagabundeia
Perdido de ti, mãe, teu rebento.

Pelas ruas rolam as folhas
Pelas árvores passarinhos –
Num lugar pelas montanhas
Há de ficar meu lar longínquo.



Über die Felder...

Über den Himmel Wolken ziehn
Über die Felder geht der Wind,
Über die Felder wandert
Meiner Mutter verlorenes Kind.

Über die Strasse Blätter wehn,
Über den Bäumen Vögel schrein --
Irgendwo über den Bergen
Muß meine ferne Heimat sein.



HESSE, Hermann. Gesammelte Werke in zwölf Bänden, Bd. I. Frankfurt: Suhrkamp, 1970.

11.11.08

William Shakespeare: Soneto LXXIII. Tradução de Ivo Barroso

Soneto LXXIII

Em mim tu podes ver a quadra fria
Em que as folhas, já poucas ou nenhumas,
Pendem do ramo trêmulo onde havia
Outrora ninhos e gorjeio e plumas.
Em mim contemplas essa luz que apaga
Quando no poente o dia se faz mudo
E pouco a pouco a negra noite o traga,
Gêmea da morte, que cancela tudo.
Em mim tu sentes resplender o fogo
Que ardia sob as cinzas do passado
E num leito de morte expira logo
Do quanto que o nutriu ora esgotado.

Sabê-lo faz o teu amor mais forte
Por quem em breve há de levar a morte.



SHAKESPEARE, William. "Soneto LXXIII". In:_____. 50 sonetos. Trad. de Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.




Sonnet LXXIII

That time of year thou mayst in me behold,
When yellow leaves, or none, or few do hang
Upon those boughs which shake against the cold,
Bare ruined choirs, where late the sweet birds sang.
In me thou seest the twilight of such day,
As after sunset fadeth in the west,
Which by and by black night doth take away,
Death's second self that seals up all in rest.
In me thou seest the glowing of such fire,
That on the ashes of his youth doth lie,
As the death-bed, whereon it must expire,
Consumed with that which it was nourished by.

This thou perceiv'st, which makes thy love more strong,
To love that well, which thou must leave ere long.



SHAKESPEARE, William. The complete works. Edited with a glossary by W.J. Craig. London: Oxford University Press, 1957.

9.11.08

Miguel de Cervantes: D. Quixote, sobre a poesia

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Cervantes, Don Quijote II:

A poesia, senhor fidalgo, a meu parecer, é como uma donzela terna e de pouca idade e extremamente formosa, a quem cuidam de enriquecer, polir e adornar outras muitas donzelas, que são todas as outras ciências, e ela há de se servir de todas, e todas hão de se autorizar com ela; porém tal donzela não quer ser manuseada, nem trazida pelas ruas, nem publicada pelas esquinas das praças nem pelos rincões dos palácios. Ela é feita de uma alquimia de tal virtude que quem a souber tratar transforma-la-á em ouro puríssimo de inestimável preço.



La poesía, señor hidalgo, a mi parecer, es como una doncella tierna y de poca edad, y en todo estremo hermosa, a quien tienen cuidado de enriquecer, pulir y adornar otras muchas doncellas, que son todas las otras ciencias, y ella se ha de servir de todas, y todas se han de autorizar con ella; pero esta tal doncella no quiere ser manoseada, ni traída por las calles, ni publicada por las esquinas de las plazas ni por los rincones de los palacios. Ella es hecha de una alquimia de tal virtud, que quien la sabe tratar la volverá en oro purísimo de inestimable precio.



De: CERVANTES, Miguel de. Don Quijote de la Mancha. Madrid: Real Academia Española, 2004, p.666.

7.11.08

Carlos Drummond de Andrade: "O chamado"

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O CHAMADO

Na rua escura o velho poeta
(lume de minha mocidade)
já não criava, simples criatura
exposta aos ventos da cidade.

Ao vê-lo curvo e desgarrado
na caótica noite urbana,
o que senti, não alegria,
era, talvez, carência humana.

E pergunto ao poeta, pergunto-lhe
(numa esperança que não digo)
para onde vai — a que angra serena,
a que Pasárgada, a que abrigo?

A palavra oscila no espaço
um momento. Eis que, sibilino,
entre as aparências sem rumo,
responde o poeta: Ao meu destino.

E foi-se para onde a intuição,
o amor, o risco desejado
o chamavam, sem que ninguém
pressentisse, em torno, o chamado.





De: "Lição de Coisas". In: Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.

5.11.08

Barack Obama: do discurso da vitória

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Se há alguém que ainda duvida que a América seja um lugar em que todas as coisas são possíveis, que ainda se pergunta se o sonho dos nossos Fundadores está vivo em nosso tempo, que ainda questiona o poder da nossa democracia, esta noite é a resposta.

[...]

Esta é a verdadeira maravilha da América: ser capaz de mudar.

Elizabeth Bishop: "One art" / "Uma certa arte" (tradução de Nelson Ascher)

.


One art


The art of losing isn't hard to master;
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster.

Lose something every day. Accept the fluster
of lost door keys, the hour badly spent.
The art of losing isn't hard to master.

Then practice losing farther, losing faster:
places, and names, and where it was you meant
to travel. None of these will bring disaster.

I lost my mother's watch. And look! my last,
or next-to-last, of three loved houses went.
The art of losing isn't hard to master.

I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
some realms I owned, two rivers, a continent.
I miss them, but it wasn't a disaster.

Even losing you (the joking voice, a gesture
I love) I shan't have lied. It's evident
the art of losing's not too hard to master
though it may look like (Write it!) like disaster.




Uma certa arte

A arte da perda é fácil de estudar:
a perda, a tantas coisas, é latente
que perdê-las nem chega a ser azar.

Perde algo a cada dia. Deixa estar:
percam-se a chave, o tempo inutilmente.
A arte da perda é fácil de abarcar.

Perde-se mais e melhor. Nome ou lugar,
destino que talvez tinhas em mente
para a viagem. Nem isto é mesmo azar.

Perdi o relógio de mamãe. E um lar
dos três que tive, o (quase) mais recente.
A arte da perda é fácil de apurar.

Duas cidades lindas. Mais: um par
de rios, uns reinos meus, um continente.
Perdi-os, mas não foi um grande azar.

Mesmo perder-te (a voz jocosa, um ar
que eu amo), isso tampouco me desmente.
A arte da perda é fácil, apesar
de parecer (Anota!) um grande azar.



BISHOP, Elizabeth. In: ASCHER, Nelson. Poesia alheia. 124 poemas traduzidos. Rio de Janeiro: Imago, 1998.

3.11.08

Nietzsche: de "Ecce homo"

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“Deus”, “imortalidade da alma”, “redenção”, “o além”, todos esses são conceitos ao quais não dediquei nenhuma atenção, com os quais não perdi nenhum tempo, nem mesmo quando criança – talvez eu jamais tenha sido bastante infantil para fazê-lo? – Não conheço o ateísmo em absoluto como resultado, e menos ainda como acontecimento: ele se dá em mim como instinto. Sou demasiadamente curioso, demasiadamente problemático, demasiadamente altaneiro para me satisfazer com uma resposta grosseira. Deus é uma resposta grosseira, uma indelicadeza contra nós, pensadores –, até, no fundo, apenas uma proibição grosseira que nos fazem: não deveis pensar!



De: NIETZSCHE, Friedrich. "Ecce homo: wie man wird, was man ist". Werke in drei Bänden. Bd.2. Herausgegeben von Karl Schlechta. München: Hanser, 1954.

2.11.08

Adriano Nunes: "Soneto IV"

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SONETO IV



O PENSAMENTO
PESA O POEMA.
POR QUE SUPÕE
SER ASSIM LEVE


COMO UMA PENA?
POR QUE SEQUER
NADA PONDERA
OU PRINCIPIA?


O PENSAMENTO
É MESMO CEGO.
POR QUE NÃO VÊ


QUE SÓ O POEMA
TUDO SUPORTA,
TUDO SUSTENTA?

Sobre o "roubo da história"

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 1 de novembro:



Sobre o "Roubo da História"


Livro de Jack Goody desfaz confusões entre o Ocidente e a modernidade


NOS SÉCULOS 19 e 20, a esmagadora superioridade científica, tecnológica e econômica da Europa e dos Estados Unidos sobre o resto do mundo (com exceção, no século 20, do Japão) intrigou inúmeros cientistas sociais. O sociólogo Max Weber, por exemplo, perguntava-se: "Que encadeamento de circunstâncias levou a que precisamente no terreno do Ocidente, e somente aqui, tenham surgido fenômenos culturais que se desenvolvem numa direção -pelo menos é o que gostamos de pensar- de significado e validade universais?".

Trata-se da questão da originalidade do Ocidente. Não é apenas que o Ocidente seja considerado diferente, mas que a sua diferença, a sua singularidade, pareça se encontrar precisamente no seu caráter universal. Entre outros, Karl Marx já havia enfrentado essa questão antes de Weber e, ainda hoje, ela continua a instigar inúmeros cientistas sociais.

Em livro recente publicado este ano no Brasil, "O Roubo da História: Como os Europeus se Apropriaram das Idéias e Invenções do Oriente" (editora Contexto), o antropólogo Jack Goody procura mostrar o caráter em última análise etnocêntrico das respostas que têm sido propostas por praticamente todos esses estudiosos.

Reconhecendo que o Ocidente tem ostentado uma inegável superioridade científica, tecnológica e econômica sobre o resto do mundo, Goody chama atenção, entretanto, para o fato de que essa vantagem é relativamente recente, sendo discutível que tenha ocorrido antes do século 17 ou mesmo antes da Revolução Industrial. Assim, por exemplo, desde o início da Idade Média na Europa até o século 16 ou 17, a China esteve à frente do Ocidente, no que diz respeito à tecnologia e à economia. Basta lembrar que foi do Oriente que vieram as inovações que Francis Bacon, no século 16, considerava centrais para a sociedade moderna, isto é, a bússola, o papel, a pólvora, a prensa, a manufatura e mesmo a industrialização da seda e dos tecidos de algodão.

Ademais, hoje em dia, a ciência, a tecnologia e a economia do Japão, dos "tigres asiáticos", da China e da Índia talvez estejam perto de, novamente, retomar a hegemonia mundial. O etnocentrismo dos estudiosos ocidentais está em projetar no passado da Europa a atual superioridade ocidental nas esferas mencionadas, de modo que essa superioridade -que, considerando-se a história como um todo, não passa de conjuntural- pareça pertencer essencialmente à cultura ocidental.

Tal é o resultado, por exemplo, do esquema conceitual marxista segundo o qual, na Europa, foi a dissolução do escravagismo antigo que produziu as condições necessárias para o estabelecimento do feudalismo medieval, e a dissolução deste que produziu as condições necessárias para o surgimento do capitalismo e da modernidade.

Segundo esse esquema, onde não se encontrem tais condições, o capitalismo não surge espontaneamente. É assim que se pretende explicar por que a Ásia não teria conhecido o capitalismo, antes de ser presa do colonialismo e do imperialismo: ela teria ficado, por milênios, atolada na estagnação daquilo que Marx chamava de "modo de produção asiático". Ora, Goody argumenta convincentemente que essa estagnação mesma jamais passou de um mito.

A meu ver, o grande mérito de "O Roubo da História" é desfazer a confusão entre o Ocidente e a modernidade. Com isso, ele destrói as bases do etnocentrismo verdadeiramente inaceitável -que se encontra na base, por exemplo, da teoria do "choque de civilizações", de Samuel Huntington- que é a pretensão de que a modernidade pertença à cultura ou à "civilização" ocidental.

A modernidade não pertence a cultura nenhuma, mas surge sempre CONTRA uma cultura particular, como uma fenda, uma fissura no tecido desta. Assim, na Europa, a modernidade não surge como um desenvolvimento da cultura cristã, mas como uma crítica a esta ou a determinados componentes desta, feita por indivíduos como Copérnico, Montaigne, Bruno, Descartes etc., indivíduos que, na medida em que a criticavam, já dela se separavam, já dela se desenraizavam.

A crítica faz parte da razão que, não pertencendo a cultura particular nenhuma, está em princípio disponível a todos os seres humanos e culturas. Entendida desse modo, a modernidade não consiste numa etapa da história da Europa ou do mundo, mas numa postura crítica ante a cultura, postura que é capaz de surgir em diferentes momentos e regiões do mundo, como na Atenas de Péricles, na Índia do imperador Ashoka ou no Brasil de hoje.

29.10.08

Francisco Alvim: "Em silêncio conversemos"

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Em silêncio conversemos

Que fazer deste ser
sem prumo
despencado do extremo de um dia e
que o sono não recolheu?

Não não indaguemos
Para que indagar matéria de silêncio
Procurar a nenhuma razão que nos explique
e suavemente nos envolva
em suas turvas paredes protetoras

Nada de perguntas
A campânula rompeu-se
O instante nos ofusca

A quem sobra olhos resta ver
um ser nu a vida pouca
Só dentes e sapatos
de volta para casa

Nem um passo à frente
ou atrás
De pés firmes
o corpo oscilante
neste suave embalo da mágoa
descansemos




De: ALVIM, Francisco. Sol dos cegos. Rio de Janeiro: 1968.

Adriana Calcanhotto: Lançamento de "Saga lusa" hoje na Livraria da Vila, em São Paulo

27.10.08

Francisco Bosco: O fim e o recomeço da esperança

O FIM E O RECOMEÇO DA ESPERANÇA


Desde que foi oficialmente anunciada a derrota de Gabeira, algumas horas atrás, tenho recebido muitos emails de amigos comentando o ocorrido. Em meio à consternação geral e às diversas tentativas de análise das causas da derrota e de suas conseqüências, um email tocou num aspecto essencial, que exige a seguinte reflexão. O texto em questão é do jornalista e escritor Fernando Molica; nele, Molica pergunta minha opinião sobre se a derrota de Gabeira significaria a irrefutabilidade política, concretamente falando, do "axioma pernicioso" que Gabeira teria tido a coragem e firmeza éticas de atacar, sendo esse o sentido fundamental de sua candidatura. Esse axioma, eu o descrevera em texto anterior (publicado aqui nesse site), nos seguintes termos: "A eleição de Gabeira fará ruir um axioma pernicioso que vem dominando a cena política no Brasil, e em que tanto o PSDB como o PT, nas últimas quatro eleições presidenciais, mergulharam de cabeça: o axioma segundo o qual não se vence uma eleição sem fazer o jogo sujo das alianças espúrias, do loteamento prévio de cargos, dos golpes baixos eleitorais e por aí em diante. Esse jogo sujo, ao começar logo na campanha, invariavelmente caminha para o exercício do poder, onde o mais despudorado fisiologismo (vide, como exemplo recente, o episódio Renan Calheiros) é sempre desculpado pela “governabilidade”, palavrinha mágica com a qual os governantes legitimam sua fraqueza ideológica e moral."

Pois bem, o que mais me entristeceu na derrota de ontem - e ao mesmo tempo é o que deixa acesa uma centelha de esperança - é que Gabeira, a meu ver, não perdeu porque fez uma campanha historicamente inovadora, orientada por princípios éticos inarredáveis. Perdeu por detalhes. Sobretudo erros que ele próprio cometeu durante o segundo turno. Podem-se elencar vários: a declaração infeliz sobre a vereadora Lucinha (a qual, segundo Gabeira, teria "uma visão suburbana" a respeito da instalação de um lixão na zona oeste do Rio), a declaração mais infeliz ainda sobre os sambistas que apoiaram publicamente Eduardo Paes (que, segundo o candidato do PV, "foram atraídos por uma feijoada"), as imagens muito centradas na zona sul em seus programas, os artistas idem, uma postura pouco incisiva em denunciar os golpes baixos do adversário, entre outros.

Esses erros têm a ver, em parte, com seus próprios méritos. A declaração sobre a vereadora Lucinha é, numa dimensão conceitual mais profunda, desprovida de qualquer preconceito: Gabeira empregou a palavra "suburbana" no sentido de provinciana, limitada, excessivamente local e conjuntural, e não como um preconceito contra a origem de alguém. Da mesma forma, ao falar que os tais sambistas foram atraídos por uma feijoada ele certamente tinha em mente o papel cúmplice da vítima simbólica no populismo brasileiro: a definição do populismo é precisamente a relação não-institucional, não-legal, portanto não-republicana entre o dono do poder e o "povo". Trocando em miúdos, trata-se do político que oferece cesta-básica em troca de votos, pessoalizando a política ao invés de universalizá-la. Os cidadãos pobres que aceitam esse jogo comportam-se exatamente como quem aceita votar em alguém por causa de uma feijoada, e era a esse mecanismo histórico que Gabeira, no fundo, aludia. Não há como comprovar que os sambistas em questão apoiavam Paes por motivos de ordem pessoalizante, daí a declaração de Gabeira ter sido mesmo infeliz e até leviana, mas ela, num nível mais profundo, tocava numa questão fundamental.

Com efeito, a candidatura de Gabeira tinha sua força maior numa dimensão simbólica (centrada na sólida afirmação dos valores republicanos, eles mesmos simbólicos e abstratos por definição) que, por sua vez, exige do eleitorado uma alta capacidade de abstração. Não é por acaso, obviamente, que a imensa maioria de seus eleitores é dotada de maiores níveis de instrução. A essa força simbólica, o candidato adversário respondia com uma retórica concreta, palpável, de ação e números, supostamente esvaziada de caráter ideológico. O embate se estabeleceu entre esses pólos, e Gabeira errou decisivamente ao fornecer munição para que seu adversário, valendo-se dos golpes baixos da política tradicional, transformasse seu republicanismo em elitismo, sua sofisticação intelectual em preconceito. No meu entender, esse erro determinou sua derrota.

Mas, assim como sua candidatura transcendia, simbolicamente, seu tempo e lugar efetivos, sua derrota também transcende seu resultado efetivo. À pergunta de Fernando Molica, com que iniciei esse arrazoado, eu responderia então o seguinte: a derrota de Gabeira não significa a vitória do axioma pernicioso acima referido, mas, ao contrário, a prova de que é possível desmenti-lo. Pois Gabeira não perdeu porque desobedeceu o axioma, mas porque errou em detalhes de campanha. Detalhes que, numa contenda acirrada, acabaram por fazer a diferença. Quando surgirá uma outra figura política com tamanha estatura ética e vontade política para enfrentar tudo isso, aí são outros quinhentos (espero que não quinhentos anos), mas, tal como se deu, a derrota reacende a esperança no momento mesmo que a apagou.

Francisco Bosco
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26.10.08

Giuseppe Ungaretti: "Allegría di naufragi" / "Alegria de naufrágios"

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Alegria de naufrágios


E rápido retoma
a viagem
como
depois do naufrágio
um sobrevivente
lobo do mar



Allegría di naufragi

E subito riprende
il viaggio
come
dopo il naufragio
un superstite
lupo di mare



De: UNGARETTI, Giuseppe. Allegria di naufragi. Firenze: Vallechi, 1919.

25.10.08

Caetano Veloso: Gabeira

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GABEIRA GABEIRA GABEIRA GABEIRA GABEIRA GABEIRA. Vamos redobrar o entusiasmo e deixar a onda crescer. Gabeira é uma onda boa. O Rio está tendo coragem de olhar para si mesmo. Acho que estamos bem com Paes e Gabeira para escolher. Não tenho nada contra Paes. Mas Gabeira é muito mais coerente. Desprezemos a mão pesada da grande imprensa em sua tentativa de sufocar a força espontânea que a candidatura de Gabeira desencadeou. Tudo o que ele fez de admirável - respeito aos concorrentes, limpeza na campanha de rua, desprezo pelos “santinhos” - vai ganhar cada vez mais significado. Gabeira se eleger prefeito do Rio é algo bom em si mesmo. Comecemos a pensar em ajudá-lo a governar. E que esse nosso pensamento chegue ao governo do estado e ao planalto. Essa raiva de Dirceu é patética. E a de Vladimir (de quem sempre gosto mais) é apenas para uso de campanha. Depois todos terão de conviver com a retidão e a sensatez que Gabeira nunca abandonou e que há de manter quando for prefeito.




Do blog "Obra em Progresso", http://www.obraemprogresso.com.br/

Constantinos Caváfis: "Desejos", traduzido por Ísis Borges da Fonseca







De: KAVÁFIS, K. Poemas de K. Kaváfis. Tradução, estudo e notas de Ísis Borges da Fonseca. São Paulo: Odysseus, 2006.

24.10.08

Paul Valéry: sobre a literatura

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Há pessoas que buscam na literatura a recordação de suas emoções, ou as emoções mesmas; ou o reforço ou o esclarecimento de suas próprias emoções.

Quanto a mim, não necessito nem de tais reforços nem de tais explicações, nem sobretudo da recordação, do ricordo de minhas emoções – pois das minhas emoções só amo as que não precisam ser recordadas nem reforçadas nem esclarecidas.

Aos livros, peço: ou o esquecimento, ser outro – e consequentemente nenhuma profundidade; ou o armamento do meu espírito, o armamento não do indivíduo; – mas visões que não tive e que podem enriquecer o meu arsenal – meios suscetíveis de me engrandecer – ou de me economizar erros ou tempo –

É nisso que os romances sobre o amor me entediam – perder tempo acerca de uma perda de tempo e perdê-lo em análises que já sei que não valem nada, sendo ou demasiadamente particulares ou demasiadamente arbitrárias por essência.



De: VALÉRY, Paul. "Ego". In: Cahiers I. Paris: Gallimard, 1973.

Amanhã, sábado, 10h. no Leme: Onda Verde para eleger Gabeira

22.10.08

Ezra Pound: "In a station of the metro" / "Numa estação do metrô"

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Numa estação do metrô

A aparição desses rostos na multidão:
pétalas num galho molhado, preto.



In a station of the metro

The apparition of these faces in the crowd;
petals on a wet, black bough.



De: POUND, Ezra. "Poems of Lustra: 1913-1915". In: Personae. The shorter poems. Org. p. L. Baechler e A. W. Litz. New York: New Directions, 1990.

21.10.08

Francisco Bosco: Uma chance histórica

A candidatura de Gabeira a prefeito do Rio de Janeiro tem uma enorme importância, não apenas para a cidade do Rio, como para todo o Brasil e sua história política. É no mínimo uma raridade, senão uma novidade histórica, uma candidatura que, desde o início, tenha se orientado incondicionalmente por princípios de absoluto respeito à legalidade, ao espaço público e aos adversários políticos. Uma candidatura que tenha se guiado por um elevado senso moral, de que não abriu mão mesmo quando confrontando manobras tradicionais da política brasileira, como distribuição de panfletos apócrifos, uso abusivo e caviloso de declarações infelizes (como no episódio que envolveu a vereadora Lucinha), estratégias obscurantistas, etc.

Pois essa tem sido a postura do candidato Gabeira, que estabeleceu tais princípios como condição para candidatar-se. Não se pode perder de vista a chance e o significado históricos desse gesto e de sua manutenção inabalável. A eleição de Gabeira fará ruir um axioma pernicioso que vem dominando a cena política no Brasil, e em que tanto o PSDB como o PT, nas últimas quatro eleições presidenciais, mergulharam de cabeça: o axioma segundo o qual não se vence uma eleição sem fazer o jogo sujo das alianças espúrias, do loteamento prévio de cargos, dos golpes baixos eleitorais e por aí em diante. Esse jogo sujo, ao começar logo na campanha, invariavelmente caminha para o exercício do poder, onde o mais despudorado fisiologismo (vide, como exemplo recente, o episódio Renan Calheiros) é sempre desculpado pela “governabilidade”, palavrinha mágica com a qual os governantes legitimam sua fraqueza ideológica e moral.

É precisamente contra tudo isso que a candidatura de Gabeira desde já se opõe, e a firmeza que o candidato vem demonstrando na sustentação dessa postura não deixa dúvidas quanto a que ela permanecerá orientando sua gestão, em caso de vitória. Pois essa vitória, então, significará nada menos que a possibilidade de o exercício político estar verdadeiramente subordinado aos interesses republicanos, isto é, significará que a esfera política brasileira, tão esvaziada, tão imobilizadora, será dotada de credibilidade. Sem essa credibilidade parece impossível mobilizar a sociedade a fim de ela tornar-se uma força decisiva no processo de engrandecimento do Brasil, processo que exige maior justiça social, o que por sua vez depende de amplo respeito à legalidade. Parece-me que tudo isso fica comprometido quando a esfera política é contaminada, desde as campanhas eleitorais, pelo jogo sujo de que falei acima.

Não sou cientista político, minhas palavras são apenas as de um cidadão atento ao que considera os caminhos e descaminhos de sua cidade, seu país, seu mundo. Mas posso e devo dizer que, numa era de tantas incertezas – morais, estéticas, comportamentais, etc. –, a candidatura de Gabeira é um acontecimento que não me deixa nenhuma dúvida quanto a sua importância e seu significado de oportunidade histórica, oportunidade que não podemos desperdiçar.


Francisco Bosco, a uma semana da eleição.

Lançamento de livro de Oleg Almeida

Lançamento do livro "Memórias dum hiperbóreo", de Oleg Alemida, hoje, às 19 h, na Livraria Timbre, no Shopping da Gávea, no Rio de Janeiro:



20.10.08

Cecília Meireles: "Elegia a uma pequena borboleta"

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Elegia a uma pequena borboleta


Como chegavas do casulo,
— inacabada seda viva —
tuas antenas — fios soltos
da trama de que eras tecida,
e teus olhos, dois grãos da noite
de onde o teu mistério surgia,

como caíste sobre o mundo
inábil, na manhã tão clara,
sem mãe, sem guia, sem conselho,
e rolavas por uma escada
como papel, penugem, poeira,
com mais sonho e silêncio que asas,

minha mão tosca te agarrou
com uma dura, inocente culpa,
e é cinza de lua teu corpo,
meus dedos, sua sepultura.
Já desfeita e ainda palpitante,
expiras sem noção nenhuma.

Ó bordado do véu do dia,
transparente anêmona aérea!
não leves meu rosto contigo:
leva o pranto que te celebra,
no olho precário em que te acabas,
meu remorso ajoelhado leva!

Choro a tua forma violada,
miraculosa, alva, divina,
criatura de pólen, de aragem,
diáfana pétala da vida!
Choro ter pesado em teu corpo
que no estame não pesaria.

Choro esta humana insuficiência:
— a confusão dos nossos olhos
— o selvagem peso do gesto,
— cegueira — ignorância — remotos
instintos súbitos — violências
que o sonho e a graça prostram mortos

Pudesse a etéreos paraísos
ascender teu leve fantasma,
e meu coração penitente
ser a rosa desabrochada
para servir-te mel e aroma,
por toda a eternidade escrava!

E as lágrimas que por ti choro
fossem o orvalho desses campos,
— os espelhos que refletissem
— vôo e silêncio — os teus encantos,
com a ternura humilde e o remorso
dos meus desacertos humanos!




De: MEIRELES, Cecília. “Retrato natural”. In: Obra poética. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1967.

19.10.08

A educação da polícia

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 18 de outubro:



A educação da polícia


RECENTEMENTE UM amigo meu, professor de filosofia, ficou chocado ao passar em frente ao Instituto de Ciências Humanas e Filosofia (ICHF) da Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói (RJ). É que, tentando entender qual era o objeto contra o qual protestavam os estudantes que haviam por lá armado uma barricada, ele percebeu um cartaz que continha a palavra "Kant" seguida de um sinal de igualdade, seguido de uma cruz suástica: em suma, "Kant é igual ao nazismo".

"Que estudantes são esses", questionava, "que associam ao nazismo justamente o maior filósofo do iluminismo, aquele que mostrou que o fim último do direito é a liberdade e que afirmava não haver nada neste mundo que não possa ser objeto de crítica?".

Concordando que a cena por ele descrita era absurda – embora talvez não estivesse inteiramente deslocada em certos círculos universitários, digamos "pós-modernos" – resolvi, intrigado, fazer uma sumária pesquisa sobre esse assunto na internet. Logo verifiquei que estávamos equivocados em relação aos estudantes. Não é o filósofo alemão Immanuel Kant, mas o antropólogo brasileiro Roberto Kant de Lima que eles acusam de nazismo ou totalitarismo. Ora, ocorre que conheço suficientemente o trabalho também deste Kant para poder afirmar que, de todo modo, os estudantes em questão estão errados.

De fato, tive oportunidade de ler, algum tempo atrás, dois livros originais e estimulantes desse notável antropólogo. O primeiro, "A antropologia da academia: quando os índios somos nós", é o resultado do fato de que Roberto Kant aproveitou a ocasião em que fazia o seu doutorado, em Harvard, para observar a comunidade acadêmica americana com o olhar de um antropólogo a efetuar seu trabalho de campo. Isso lhe permitiu apreender de maneiras surpreendentes algumas marcantes características tanto da sociedade americana quanto, por comparação, da brasileira.

No outro livro dele que li, "A polícia da cidade do Rio de Janeiro: seus dilemas e paradoxos", Roberto Kant consegue, a partir do exame da questão de segurança pública no Rio, revelar os mecanismos particulares por meio dos quais no Brasil, de maneira geral, "uma ordem constitucional igualitária é aplicada de uma maneira hierárquica pelo sistema judicial". As práticas policiais discricionárias são, como ele mostra, parte de um sistema judicial oficial que opera tradicionalmente por meio de "malhas" que particularizam, em todos os níveis do sistema judiciário, a aplicação das leis universais. No nível da polícia, essas "malhas" se manifestam como certos padrões tradicionais de atitude e comportamento -certo ethos- que, a despeito de uma legislação universalista e moderna, perpetuam em grande medida as desigualdades particularistas herdadas do Brasil pré-moderno, tradicional, hierárquico, escravagista.

Forçoso é reconhecer que, sem a eliminação dessas práticas anacrônicas, não se pode dizer que tenham plena vigência, no Brasil, nem os direitos humanos nem a democracia. Essa verdade foi há pouco dramaticamente reafirmada pela descoberta do erro judiciário que consistiu na prisão e na condenação de três rapazes pobres que, para escapar da brutal tortura a que foram submetidos numa delegacia policial de São Paulo, haviam confessado um crime que não cometeram.

Existe portanto, segundo Roberto Kant, uma situação esquizofrênica: por um lado, uma prática policial cuja teoria implícita é antimoderna, antiuniversalista e discriminatória; e, por outro lado, uma teoria moderna, universalista e igualitária, que se encontra por exemplo na nossa Constituição, mas que não integralmente é posta em prática. Foi na tentativa de contribuir para corrigir essa monstruosidade que ele não só criou e coordena um respeitado curso de especialização em segurança pública, como também elaborou um exemplar projeto de curso superior de bacharelado em segurança pública e social. "Urge", diz ele, com razão, "instituir, no âmbito da universidade pública, gratuita e de qualidade, a produção e reprodução de um campo de conhecimento que propicie a transformação da inflexão estatal da segurança pública para o viés do cidadão e da sociedade".

Pois bem, foi ao tentar abrir tal curso na UFF que Roberto Kant provocou a ira do pequeno, porém ruidoso, grupo de estudantes do ICHF que o acusam de nazismo. Será que se consideram revolucionários quando se opõem à luta contra o que há de pior e de mais retrógrado no Brasil?

16.10.08

Paul Eluard: "[Mon amour]" / "[Meu amor]"

[Meu amor]

Meu amor por ter figurado meus desejos
Posto teus lábios no céu de tuas palavras como
[um astro
Teus beijos na noite viva
E o rastro de teus braços em torno de mim
Como uma chama em sinal de conquista
Meus sonhos estão no mundo
Claros e perpétuos

E quando tu não estás
Sonho que durmo sonho que sonho




[Mon amour]

Mon amour pour avoir figuré mes désirs
Mis tes lèvres au ciel de tes mots comme un astre
Tes baisers dans la nuit vivante
Et le sillage de tes bras autour de moi
Comme une flamme en signe de conquête
Mes rêves sont au monde
Clairs et perpétuels

Et quand tu n'es pas là
Je rêve que je dors je rêve que je rêve



De: ÉLUARD, Paul. "L'Amour la poésie", In: Capitale de la douleur, suivi de L'Amour la poésie. Paris: Gallimard, 1964.

14.10.08

Wisława Szymborska: Trecho de "O poeta e o mundo"





O mundo – o que quer que pensemos quando aterrorizados pela sua vastidão e pela nossa própria impotência, ou amargurados pela sua indiferença e pelo sofrimento individual de pessoas, animais e talvez até de plantas, pois o que garante que as plantas não sintam dor; o que quer que pensemos das extensões penetradas pelos raios de estrelas cercadas de planetas que tenhamos acabado de descobrir: de planetas já mortos? Ainda mortos? Simplesmente não sabemos; o que quer que pensemos desse teatro incomensurável para o qual temos bilhetes reservados, mas bilhetes cuja duração é ridiculamente curta, sendo cercada por duas datas arbitrárias; o que quer que pensemos deste mundo – ele é espantoso.

Mas “espantoso” é um epíteto que oculta uma armadilha lógica. Afinal, ficamos espantados por coisas que desviam de alguma norma bem conhecida e universalmente aceita, de uma obviedade à qual nos acostumamos. Ora, o problema é que não há esse mundo óbvio. Nosso espanto existe por si e não se baseia na comparação com coisa nenhuma.

É verdade que, na fala cotidiana, em que não paramos para pesar cada palavra, usamos frases como “o mundo cotidiano”, “a vida corriqueira”, “o curso normal das coisas”... Mas na língua da poesia, em que cada palavra é sopesada, nada é comum ou normal. Nem sequer uma pedra e nem sequer uma nuvem por cima. Nem sequer um dia e nem sequer uma noite depois. E sobretudo, nem sequer uma existência, seja de quem for, neste mundo.




De: SZYMBORSKA, Wisława. "The poet and the world". Nobel lecture.

12.10.08

Pedro Salinas: "[No te veo]" / "[Não te vejo]

[Não te vejo]

Não te vejo. Bem sei
que estás aqui, atrás
de uma frágil parede
de ladrilhos e cal, bem ao alcance
da minha voz, se chamasse.
Mas não chamarei.
Chamarei amanhã,
quando, ao não te ver mais
imagine que continuas
aqui perto, ao meu lado,
e que basta hoje a voz
que ontem eu não quis dar.
Amanhã... quando estiveres
lá atrás de uma
frágil parede de ventos,
de céus e de anos.


[No te veo]

No te veo. Bien sé
que estás aquí, detrás
de una frágil pared
de ladrillos y cal, bien al alcance
de mi voz, si llamara.
Pero no llamaré.
Te llamaré mañana,
cuando, al no verte ya
me imagine que sigues
aqui cerca, a mi lado,
y que basta hoy la voz
que ayer no quise dar.
Mañana... cuando estés
allá detrás de una
frágil pared de vientos,
de cielos y de años.



De: SALINAS, Pedro. Poesias completas. Madrid: Aguilar, 1961.

11.10.08

João Cabral sobre o verso livre: em 1953 e 35 anos depois

João Cabral em 1953:

Acho o verso livre uma aquisição fabulosa e que é bobagem qualquer tentativa de volta às formas preestabelecidas. Abrir mão das aquisições da poesia moderna seria para mim como banir a poesia do mundo moderno. Pois a verdade é que a realidade presente é rica demais para caber nessas formas hoje requintadas e artificiais das épocas de estabilidade cultural.
Isso não se aplica, é claro, às formas da poesia popular que usam a métrica e a rima com absoluta liberdade, sem transformá-las em condição essencial e ponto de partida da criação poética.

(Entrevista a Vinícius de Moraes, Manchete, Rio de Janeiro, 27 de junho de 1953)


João Cabral em 1988:

(...) Uma das coisas fatais da poesia foi o verso livre. No tempo em que você tinha que metrificar e rimar, você tinha que trabalhar seu texto. Desde o momento em que existe o verso livre, todo o mundo acha de descrever a dor de corno dele corno se fosse um poema. No tempo da poesia metrificada e rimada, você tinha que trabalhar e tirava o inútil.

(Entrevista a Mário César Carvalho, Folha de S,Paulo, Folha Ilustrada, São Paulo, 24 de maio de 1988)



De: CABRAL de MELO NETO, J. ATHAÍDE, F. (Org.) Idéias fixas de João Cabral de Melo Neto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

10.10.08

Nando Reis: "Igreja"

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IGREJA (Nando Reis)

Eu não gosto de padre
Eu não gosto de madre
Eu não gosto de frei.

Eu não gosto de bispo
Eu não gosto de cristo
Eu não digo amém.

Eu não monto presépio
Eu não gosto de vigário
Nem da missa das seis.

Eu não gosto de terço
Eu não gosto do berço
De Jesus de Belém.

Eu não gosto do papa
Eu não creio na graça
Do milagre de Deus.

Eu não gosto da igreja
Eu não entro na igreja
Eu não tenho religião.

8.10.08

Juán Ramón Jiménez: "No era nadie"/"Não era ninguém"

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Não era ninguém

– Não era ninguém. A água. – Ninguém?
E não é ninguém a água? – Não
há ninguém. É a flor. – Não há ninguém?
Mas não é ninguém a flor?

– Não há ninguém. Era o vento. – Ninguém?
O vento não é ninguém? – Não
há ninguém. Ilusão. – Não há ninguém?
E não é ninguém a ilusão?


No era nadie

– No era nadie. El agua. – ¿Nadie?
¿Que no es nadie el agua? – No
hay nadie. Es la flor. – ¿No hay nadie?
Pero ¿no es nadie la flor?

– No hay nadie. Era el viento. – ¿Nadie?
¿No es el viento nadie? – No
hay nadie. Ilusión. – ¿No hay nadie?
¿Y no es nadie la ilusión?



De: JIMÉNEZ, Juan Ramón. Jardines lejanos. Madrid: Taurus, 1982.

6.10.08

Fernando Pessoa: poema 165 do "Cancioneiro"

Agradeço ao Edson Dognaldo Gil por nos ter lembrado a seguinte maravilha de Fernando Pessoa:



Tenho tanto sentimento
Que é freqüente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.

Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.

Qual porém é verdadeira
E qual errada, ninguêm
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar



De: PESSOA, Fernando. "Cancioneiro". In: Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.

5.10.08

Que é a poesia?

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo sábado, 4 de outubro:




Que é a poesia?

Para dizer o que penso ser a poesia, recorro, em primeiro lugar, ao poema "O Rio", de Manuel Bandeira:

“O rio

Ser como o rio que deflui
Silencioso dentro da noite.
Não temer as trevas da noite.
Se há estrelas nos céus, refleti-las.
E se os céus se pejam de nuvens,
Como o rio as nuvens são água,
Refleti-las também sem mágoa
Nas profundidades tranqüilas.”

Desde o título, "O Rio", torna-se inevitável pensar no famoso rio do filósofo grego Heráclito, em que não é possível pisar duas vezes. O primeiro verso reforça essa impressão: "Ser como o rio"... Mas a sentença de Heráclito – aparte certas interpretações recherchées – enfatiza o mobilismo universal, o fato de que coisa nenhuma jamais permanece a mesma. O rio de Bandeira, ao contrário, é em primeiro lugar a própria imagem da constância e até de um certo estoicismo: "Ser como o rio que deflui/ Silencioso dentro da noite./ Não temer as trevas da noite".

O rio a defluir silenciosamente dentro da noite não teme as trevas da noite porque ele é também o rio da noite, isto é, a noite enquanto rio. O infinitivo aqui é implicitamente desiderativo: ele manifesta um desejo. Mas quem é que aqui deseja? Talvez se possa dizer que aquele que deseja é o poeta, ou talvez o "eu" lírico, o heterônimo, o personagem em que o poeta se transforma para escrever o poema; mas o infinitivo excede qualquer subjetividade, qualquer "eu". A rigor, não interessa quem deseja, mas apenas o próprio desejo, que se identifica com o ser. Feito um fenômeno da natureza, feito o próprio rio silencioso dentro da noite e feito a própria noite, o desejo, o ser, os versos do poema e o próprio poema estão lá, no infinitivo, silenciosos como o rio e como a noite. Fundem-se no poema o leitor, o poeta, a noite, o rio, as estrelas: "Se há estrelas nos céus, refleti-las./ E se os céus se pejam de nuvens,/ Como o rio as nuvens são água,/ Refleti-las também sem mágoa / Nas profundidades tranqüilas".

Se há estrelas nos céus, o poema as tem na superfície. Se há nuvens que o impedem de refletir as estrelas, aquelas são refletidas na profundidade do seu ser, pois as nuvens são feitas da mesma água que ele. Aqui é de Tales, o primeiro filósofo grego, para quem tudo vem da água e tudo volta para a água, mais do que de Heráclito, que me lembro.

E me lembro sobretudo do poeta Jorge Luis Borges, cujo poema “Nuvens (I)” – do qual apresento a seguir uma tradução literal, seguida do original – diz:

“Nuvens (I)

Não haverá uma só coisa que não seja
uma nuvem. São nuvens as catedrais
de vasta pedra e bíblicos cristais
que o tempo aplanará. São nuvens a Odisséia
que muda como o mar. Algo há distinto
cada vez que a abrimos. O reflexo
de tua cara já é outro no espelho
e o dia é um duvidoso labirinto.
Somos os que se vão. A numerosa
nuvem que se desfaz no poente
é nossa imagem. Incessantemente
a rosa se converte noutra rosa.
És nuvem, és mar, és olvido.
És também aquilo que perdeste”.

"Nubes (I)

No habrá una sola cosa que no sea
una nube. Lo son las catedrales
de vasta piedra y bíblicos cristales
que el tiempo allanará. Lo es la Odisea,
que cambia como el mar. Algo hay distinto
cada vez que la abrimos. El reflejo
de tu cara ya es otro en el espejo
y en el día es un dudoso laberinto.
Somos los que se van. La numerosa
nube que se deshace en el poniente
es nuestra imagen. Incesantemente
la rosa se convierte en otra rosa.
Eres nube, eres mar, eres olvido.
Eres también aquello que has perdido."


As nuvens são as transformações da água originária, isto é, são todos os entes que o tempo aplanará. Também são nuvens os versos do poema de Homero. Há entretanto uma diferença: os entes em geral perderam a memória de sua origem aquática e se esqueceram de que são nuvens. A "Odisséia", porém – o poema por antonomásia –, muda como o mar. Algo há distinto cada vez que a abrimos. Eis a diferença entre o poema e os demais entes: o poema jamais olvida, no fluxo de sua superfície significante, morfológica, sintática, melódica, rítmica e de suas submersas correntes semânticas, a natureza líquida de todas as coisas e, principalmente, de si próprio.

Lembro que outro dos primeiros filósofos gregos, Anaximandro, dizia que todos os entes determinados provêm do indeterminado (que ele chamava "ápeiron") e têm como causa o indeterminado – que podemos entender como o movimento, a mudança, a vida, o tempo – do qual provêm. Em cada um deles, porém, o indeterminado se transformou em algum ente determinado. Também o poema é um ente determinado, mas um ente determinado que, refletindo o seu oposto, porta em si a marca d'água do movimento originário. Não apenas, cada vez que o lemos, ele se torna diferente do que era na leitura anterior, mas se torna diferente de si próprio no exato instante em que o estamos a ler. Chamo "poesia" essa propriedade do poema.