14.10.08

Wisława Szymborska: Trecho de "O poeta e o mundo"





O mundo – o que quer que pensemos quando aterrorizados pela sua vastidão e pela nossa própria impotência, ou amargurados pela sua indiferença e pelo sofrimento individual de pessoas, animais e talvez até de plantas, pois o que garante que as plantas não sintam dor; o que quer que pensemos das extensões penetradas pelos raios de estrelas cercadas de planetas que tenhamos acabado de descobrir: de planetas já mortos? Ainda mortos? Simplesmente não sabemos; o que quer que pensemos desse teatro incomensurável para o qual temos bilhetes reservados, mas bilhetes cuja duração é ridiculamente curta, sendo cercada por duas datas arbitrárias; o que quer que pensemos deste mundo – ele é espantoso.

Mas “espantoso” é um epíteto que oculta uma armadilha lógica. Afinal, ficamos espantados por coisas que desviam de alguma norma bem conhecida e universalmente aceita, de uma obviedade à qual nos acostumamos. Ora, o problema é que não há esse mundo óbvio. Nosso espanto existe por si e não se baseia na comparação com coisa nenhuma.

É verdade que, na fala cotidiana, em que não paramos para pesar cada palavra, usamos frases como “o mundo cotidiano”, “a vida corriqueira”, “o curso normal das coisas”... Mas na língua da poesia, em que cada palavra é sopesada, nada é comum ou normal. Nem sequer uma pedra e nem sequer uma nuvem por cima. Nem sequer um dia e nem sequer uma noite depois. E sobretudo, nem sequer uma existência, seja de quem for, neste mundo.




De: SZYMBORSKA, Wisława. "The poet and the world". Nobel lecture.

12 comentários:

ADRIANO NUNES disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Nina Araújo disse...

"...na poesia nenhuma palavra sopesa...". Sendo assim poderia eu falar da Menina e o Barro, poeta querido, depois de ler este belo texto?

A Menina e o Barro


Olhos de azeviche
Corpo ossudo
Coberto por trapos
A menina desnutrida
Magricela, cor que some...
Come barro, ilude a vida
Dorme muito para esquecer
Da fome...
Ai, menina linda
De cabelos desgrenhados
Quem dera estes homens pudessem ver...
E suas ganancias fizessem uma tregua
Para que o barro virasse uma sopa
Um bocado de farinha com carne...
E um caderno, uma escola e uma regua.

Nina Araujo

...o poeta precisa descrever o seu mundo, como diz Wislawa...

ADRIANO NUNES disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
ADRIANO NUNES disse...

MEU POETA,

UMA BELÍSSIMA POESIA DE BANDEIRA, que eu adoro muito, PARA ALEGRAR A NOITE E A VIDA TODA:

Manuel Bandeira



Arte de amar


Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus — ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.


Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.


Porque os corpos se entendem, mas as almas não.



ABRAÇO FORTE!
ADRIANO NUNES, MACEIÓ/AL.

Anônimo disse...

Prezado Cicero,
A propósito de "O poeta e o Mundo", lembrei-me de um trecho de Octavio Paz, do livro "Signos em Rotação", em tradução de Sebastião Uchoa Leite:
"...o poeta é um ser à parte, um heterodoxo por fatalidade congênita: sempre diz outra coisa, inclusive quando diz as mesmas coisas que o resto dos homens da sua comunidade. A desconfiaça dos Estados e das Igrejas diante da poesia não nasce apenas do natural imperialismo destes poderes: a própria índole do dizer poético provoca o receio. Não é tanto aquilo que o poeta diz, mas o que vai implícito em seu dizer, sua dualidade íntima e irredutível, o que outorga às suas palavras um gosto de liberação. A freqüente acusação que se faz aos poetas de serem aéreos, distraídos, ausentes, nunca totalmente deste mundo, provém do caráter de seu dizer. A palavra poética jamais é completamente deste mundo: sempre nos leva mais além, a outras terras, a outros céus, a outras verdades. A poesia parece escapar à lei de gravidade da história porque nunca sua palavra é inteiramente histórica. Nunca a imagem quer dizer isto ou aquilo. Antes sucede o contrário, como já se viu: a imagem diz isto e aquilo ao mesmo tempo. E mais ainda: isto é aquilo."
Você, Cicero,filósofo e POETA, é um desses maravilhosos "seres à parte"; por fatalidade congênita!?
Abraço.
Mariano.

Antonio Cicero disse...

Caro Mariano,

se eu dissesse que sou "um desses maravilhosos 'seres à parte', por fatalidade congênita", eu seria antes um cabotino do que um poeta.

Abraços

Anônimo disse...

Caro Cicero,
O caráter maravilhoso da heterodoxia dos poetas em relação a leitores não-poetas como eu, é uma constatação clara pra mim. Interroguei (realmente em lugar inadequado) quanto à "fatalidade congênita" colocada por Paz, porque sempre tive dúvidas, realmente, se é possível a construção de um poeta, sem essa fatalidade (não poderia ser outra a sua reposta, desculpe-me).
Sempre aprendendo por aqui.
Abraço
Mariano

valéria tarelho disse...

"O que as pessoas dizem, na maioria das vezes, só serve para protegê-las: racionalizações, justificativas, negações... Para quê? Melhor seria o silêncio. A palavra só me interessa quando é o contrário de uma proteção: um risco, uma abertura, uma confissão, uma confidência... Gosto de que falem como quem se despe, não para se mostrar, como crêem os exibicionistas, mas para parar de se esconder."

(Trecho de “Violência e Doçura”, extraído do livro “O Amor a Solidão”, de André Comte-Sponville)
)

~> acrescento que, para então: a poesia; para tanto, os poetas. ou não.


deixo um trecho de meu "à francesa" (poema composto de uma "trilogia" sobre o nada ;))

1

(...)

2

nada sou/
serei
a não ser
um sopro de
savoir-faire

: adega
- demi-sec -
do saber

: adaga
- cega -
da sabedoria

nada
na língua
flácida
da poesia

ainda acho abrigo

seja nos livros
nos discos
nos vídeos

alguma verdade
na vaidade
no vício

3

(...)


grande abraço,
valéria tarelho

(sempre por aqui, de olhar atento ao mínimo detalhe [dentro])

Luiz disse...

Prezado Antonio, um único comentário abrangendo os seus 3 ultimos posts: geniais !!! grande abraço

ADRIANO NUNES disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Climacus disse...

"a potência de suportar/ apaixonar-se (pákhein) é a mesma de fazer/ poetar (poieîn)" (Ari, Metafísica, 1046a, 20). Se assim é, como aumentamos isso? Fazendo ou apaixonando-se?

Lisete de Silvio disse...

Tão raro encontrar algo dela.
A (craseado?? rs)título de contribuição:

FOLHETO
Sou o comprimido calmante.
Actuo em casa,
sou eficaz na repartição,
sento-me no exame,
apresento-me em tribunal,
colo minuciosamente a louça partida.
Basta que me tomes,
que me ponhas debaixo da língua,
que me engulas
com um copo de água.

Sei o que fazer na desgraça,
como aguentar a má notícia,
diminuir a injustiça,
desanuviar a falta de Deus,
escolher o chapéu de luto a condizer.
Por que esperas?
Confia na piedade química

Wislawa Szymborska


saudações