31.3.09

Henri Michaux: "Nausée ou c'est la mort qui vient?" / "Náusea ou é a morte que vem?"

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Náusea ou é a morte que vem?


Entrega-te, meu coração.
Lutamos bastante.
E que minha vida cesse.
Não fomos covardes,
Fizemos o que pudemos.

Ah! Minha alma,
Partes ou ficas,
precisas decidir.
Não me tateies assim os órgãos,
Ora com atenção, ora com frenesi,
Partes ou ficas,
Precisas decidir.

Eu não aguento mais.
Senhores da morte,
Eu não vos blasfemei nem aplaudi.
Tende pena de mim, viajante já de tantas viagens sem malas,
Sem mestre tampouco, sem riqueza e a glória foi-se embora para outro lugar,
Sois potentes certamente, e esquisitos sobretudo,
Tende pena deste homem desvairado, que antes de ultrapassar a barreira já vos grita seu nome,
Agarrai-o em pleno voo,
Que ele se acostume, se conseguir, a vossos temperamentos e a vossos hábitos,
E se tiverdes a bondade de ajudá-lo, ajudai-o, eu vos suplico.



Nausée ou c'est la mort qui vient ?

Rends-toi, mon cœur.
Nous avons assez lutté.
Et que ma vie s'arrête.
On n'a pas été des lâches,
On a fait ce qu'on a pu.

Oh ! mon âme,
Tu pars ou tu restes,
Il faut te décider.
Ne me tâte pas ainsi les organes,
Tantôt avec attention, tantôt avec égarement,
Tu pars ou tu restes,
Il faut te décider.
Moi, je n'en peux plus.

Seigneurs de la Mort
Je ne vous ai ni blasphémés ni applaudis.
Ayez pitié de moi, voyageur déjà de tant de voyages sans valises,
Sans maître non plus, sans richesse et la gloire s'en fut ailleurs,
Vous êtes puissants assurément et drôles par-dessus tout,
Ayez pitié de cet homme affolé qui avant de franchir la barrière vous crie déjà son nom,
Prenez-le au vol,
Qu'il se fasse, s'il se peut, à vos tempéraments et à vos mœurs,
Et s'il vous plaît de l'aider, aidez-le, je vous prie.



De: MICHAUX, Henri. Ecuador. Paris: Gallimard, 1929.

29.3.09

John Ashbery sobre Henri Michaux

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Apresentando a entrevista que fez com o poeta Henri Michaux, o poeta John Ashbery contou que


“Michaux não quer ser fotografado e se recusa até a permitir que um desenho que o retrate seja reproduzido. Os rostos o fascinam de modo horrível. Ele escreveu: “Um homem e seu rosto, é um pouco como se estivessem constantemente a se entredevorar”. A um editor que uma vez lhe pediu uma fotografia para publicar num catálogo, ele respondeu: “escrevo para revelar uma pessoa de cuja existência ninguém suspeitaria ao olhar para mim”. Essa declaração foi publicada no espaço que havia sido destinado ao seu retrato.


De: ASHBERY, John. "An interview with Henri Michaux". Reported sightings. Art chronicles 1957-1987. Cambridge, Mass: Harvard University Press, 1991.

27.3.09

William Butler Yeats: "The friends that have it I do wrong" / "Aqueles que acham traição"

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The friends that have it I do wrong
Whenever I remake a song
Should know what issue is at stake
It is myself that I remake.



Aqueles que acham traição
Eu refazer uma canção
Que ouçam por que problema eu passo
É a mim mesmo que refaço.


YEATS, W.B. The collected works in verse and prose. Vol.2, Epigraph. London: Chapman and Hall Ltd., 1908.

26.3.09

Pierre de Ronsard: "Quand vous serez bien vieille" / "Quando fores bem velha (Tradução de Guilherme de Almeida)

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Quando fores bem velha

Quando fores bem velha, à noite, á luz da vela
Junto ao fogo do lar, dobando o fio e fiando,
Dirás, ao recitar meus versos e pasmando:
Ronsard me celebrou no tempo em que fui bela.

E entre as servas então não há de haver aquela
Que, já sob o labor do dia dormitando,
Se o meu nome escutar não vá logo acordando
E abençoando o esplendor que o teu nome revela.

Sob a terra eu irei, fantasma silencioso,
Entre as sombras sem fim procurando repouso:
E em tua casa irás, velhinha combalida,

Chorando o meu amor e o teu cruel desdém.
Vive sem esperar pelo dia que vem;
Colhe hoje, desde já, colhe as rosas da vida.


Quando vous serez bien vieille

Quand vous serez bien vieille, au soir à la chandelle,
Assise auprès du feu, dévidant et filant,
Direz chantant mes vers, en vous émerveillant :
« Ronsard me célébrait du temps que j'étais belle. »

Lors vous n'aurez servante oyant telle nouvelle,
Déjà sous le labeur à demi sommeillant,
Qui au bruit de mon nom ne s'aille réveillant,
Bénissant votre nom, de louange immortelle.

Je serai sous la terre et, fantôme sans os,
Par les ombres myrteux je prendrai mon repos ;
Vous serez au foyer une vieille accroupie,

Regrettant mon amour et votre fier dédain.
Vivez, si m'en croyez, n'attendez à demain :
Cueillez dès aujourd'hui les roses de la vie.



RONSARD, Pierre de. "Poèmes pour Hélène". In: ALLEM, Maurice. Anthologie poétique française: XVI siècle. Paris: Garnier-Flammarion, 1965.

RONSARD, Pierre. "Soneto a Helena". In: MAGALHÃES JÚNIOR, R. Antologia de poetas franceses (do século XV ao século XX).Rio de Janeiro: Gráfica Tupy, 1950.

23.3.09

Donizete Galvão: "(Abrigo)"

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(Abrigo)

Há uma casa,
como casca,
crosta presa
nas costas.
Cicatriz de um
ninho quente,
vermelho de
fogão de lenha,
infância
onde o homem
já não cabe.

Há uma casa
branca corno
a cal, vazia,
imaterial,
que flutua
no espaço,
onde o corpo
busca guarida
quando a vida
já perdeu
o seu sal.


De: GALVÃO, Donizete. In: Traçados diversos. Uma antologia da poesia contemporânea. Org. por Adilson Miguel. São Paulo: Scipione, 2009.

22.3.09

A ética e a religião

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 21 de março.

A ética e a religião


EMBORA TALVEZ já se tenha falado até demais sobre o episódio da excomunhão da mãe que autorizou o aborto da filha de 9 anos estuprada pelo padrasto, bem como dos médicos que a fizeram abortar, quero ainda chamar atenção para uma coisa. É que a condenação quase unânime, pela opinião pública, tanto ao arcebispo que anunciou a excomunhão quanto à Igreja Católica foi de natureza moral.

Em outras palavras, considerou-se, de maneira geral, que a Igreja estava moralmente errada ao condenar esse aborto; ao dar mais importância à sobrevivência do feto do que à vida e ao bem-estar da criança de nove anos; ao excomungar a mãe, que pôs a vida e o bem-estar da filha que ama acima da vida do neto ainda nem sequer nascido, e concebido em circunstâncias traumáticas tanto para ela quanto para a filha; e ao excomungar os médicos que agiram segundo a sua ética profissional e de acordo com as leis do país. Ora, é evidente que essa condenação moral à Igreja não é de origem religiosa.

Pois bem, as religiões se consideram a fonte de toda ética. É assim que, sempre que a imprensa destaca seja um crime hediondo, seja o aumento dos índices de criminalidade, seja um episódio de corrupção de políticos, os moralistas religiosos aproveitam para se manifestar na imprensa. Em artigos ou cartas de leitores, eles apontam, como a causa da proliferação de tais acontecimentos lamentáveis, o descaso contemporâneo de grande parte da população pela religião e, consequentemente, pelos valores cristãos.

Ultimamente esse descaso tem sido associado – quando não atribuído – ao relativismo. O exemplo foi dado pelo cardeal Ratzinger que, às vésperas de se tornar o papa Bento 16, advertiu que "estamos a caminho de uma ditadura do relativismo que não reconhece coisa nenhuma como certa".

Supõe-se, assim, que uma pessoa que ache, por exemplo, que não há certo ou errado absolutos, mas que tudo depende da cultura a que cada qual pertence, relativiza, ipso facto, as regras morais e as leis que imperam na sua própria cultura, o que lhe torna mais fácil contemplar a violação dessas regras e leis.

Digamos que isso seja verdade. Dado esse "diagnóstico", o "remédio" prescrito pelos moralistas é, evidentemente, a volta às "certezas absolutas" da religião. Mas isso é impossível, pois as "certezas absolutas" das religiões caíram exatamente porque jamais foram realmente indubitáveis.

Não é possível racionalmente voltar para aquém do relativismo. O relativista cultural, por exemplo, sabe que foi por uma série de circunstâncias aleatórias que ele veio a ser, digamos, cristão; sabe, portanto, que, se tivessem sido outras as circunstâncias, ele teria sido, talvez, muçulmano ou budista. Basta-lhe saber isso para reconhecer o caráter contingente – e por isso relativo – de todas as religiões, inclusive da sua. Como, então, fingir que as "verdades" dela sejam superiores às das outras, ou às do irreligioso? É claro que ele poderia declará-las superiores exatamente por serem as suas: os outros que tenham outras verdades. Mas o que seria isso senão exatamente... relativismo?

Contudo, se não se pode voltar para aquém do relativismo, por que não ir além dele? Não será possível superar o relativismo, justamente ao levá-lo às suas últimas consequências? Não será exatamente o reconhecimento de que é possível que a verdade não esteja comigo, mas sim com o outro, o princípio de uma ética universal? Por esse princípio, obrigo-me (seja quem eu for) a respeitar a liberdade do outro (seja quem ele for) até o ponto em que a sua liberdade não tolha a minha.

Esse princípio se manifesta também na chamada "regra de ouro", que diz "não faças ao outro o que não queres que te façam". Tal regra não pertence a esta ou àquela religião positiva. Exprimindo simplesmente um procedimento racional de reciprocidade na convivência social, ela foi, por meio das mais diferentes formulações, expressa não apenas por cristãos, mas por zoroastristas, confucianistas, judeus, hinduístas, budistas, ateus etc. É desse modo que o relativismo é superado pelo reconhecimento de um princípio absoluto puramente racional e negativo.

Por um lado, a proclamação do caráter absoluto de regras pertencentes a religiões ou culturas positivas e particulares é evidentemente falsa; por outro lado, também é falsa – além de incorrer no que em lógica se chama de "autocontradição performativa" – a proclamação do caráter relativo de absolutamente todas as regras concebíveis.

A saída desse dilema é exatamente a proposição puramente racional que afirma o caráter relativo das regras positivas e particulares pertencententes a diferentes religiões ou culturas igualmente positivas e particulares. Tal proposição não pertence a nenhuma religião ou cultura positiva ou particular, logo, não é relativa nem incorre em autocontradição performativa. Ela é de natureza puramente negativa, universal e absoluta.

Voltando agora ao episódio mencionado da excomunhão, podemos dizer que é esse princípio puramente racional, negativo, universal e absoluto que, em última análise, permite-nos julgar os preceitos das religiões positivas, particulares e relativas; e que são estas que, ao mesclar regras positivas, particulares e relativas a princípios éticos racionais, universais e absolutos, acabam por promover a ilusão de que também estes últimos são relativos.

20.3.09

António Gamoneda: "La vida..."

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La vida es un error lleno de cosas maravillosas -- la amistad, el amor --, pero un error. Ir de la inexistencia a la inexistencia es un asunto raro, ¿no? Y esto a mí no me parece metafísica. Son hechos.


De: GAMONEDA, António. In; MARCOS, Javier Rodriguez. "Gamoneda vuelve a la guerra". El País. Madrid, 7/3/2009.

19.3.09

Donizete Galvão: sobre Domingos Carvalho da Silva

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No artigo que fiz para a "Ilustrada" da Folha de São Paulo e que aqui publiquei no dia 8 do corrente, expliquei que, segundo Sérgio Buarque de Hollanda, Domingos Carvalho da Silva, membro do grupo conhecido como Geração de 45, “decretara que o bom verso não contém esdrúxulas (apesar de Camões), que a palavra ‘fruta’ deve ser desterrada da poesia, em favor de ‘fruto’, e a palavra "cachorro" igualmente abolida, em proveito de ‘cão’; e mais, que o oceano Pacífico (adeus Melville e Gauguin!) não é nada poético, bem ao oposto do que sucede com seu vizinho, o oceano Índico”.

Pois bem, vejam que interessante o e-mail que o poeta Donizete Galvão me enviou, a propósito dessa observação:


Caro Antonio Cicero:

lendo seu artigo sobre as vanguardas e, sobretudo, sobre as palavras que Domingos Carvalho da Silva diziam estar proibidas de entrar em um poema, lembrei-me de um fato. Quando publiquei meu segundo livro saiu uma curta crítica dele a que nunca tive acesso. Só me lembro que um amigo meu leu e disse que ele fazia ressalvas ao uso da palavra quaradouro ( onde se quara as roupas). ele achava que o certo era "coradouro" palavra que nunca ouvi ninguém dizer lá em Minas. O velhinho não mudou. Ele tem um livro interessante sobre poesia, Uma teoria do poema.

Abraços,

Donizete Galvão

15.3.09

Fernando Mendes Vianna: "Proclamação do barro"

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Proclamação do barro

Proclamar a cor da terra, proclamá-la,
conclamando o barro desta estrela,
sitiado pelo sangue e pelo escarro.

Levantar o brilho deste astro,
rolado como lixo numa vala.

Clamar! Somos argila, argila,
nunca estátuas prontas de alabastro.



De: VIANNA, Fernando Mendes. "Proclamação do barro". Antologia pessoal. Brasília: Thesaurus, 2001.

13.3.09

António Gamoneda: "Aún" / "Ainda"

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Ainda

Amei. É incompreensível como o tremor das árvores.
Agora estou extraviado na luz porém sei que amei.
Eu vivia num ser e seu sangue deslizava pelas minhas veias e
a música me envolvia e eu mesmo era música.
Agora,
quem está cego nos meus olhos?
Umas mãos passavam sobre meu rosto e envelheciam docemente. Que
foi existir entre cordas e espíritos?
Quem fui nos braços da minha mãe, quem fui no meu próprio coração?
É estranho:
somente aprendi a desconhecer e esquecer. É estranho:
agora, o amor
habita no esquecimento.



Aún

Amé. Es incomprensible como el temblor de los árboles.
Ahora estoy extraviado en la luz pero yo sé que amé.
Yo vivía en un ser y su sangre se deslizaba por mis venas y
la música me envolvía y yo mismo era música.
Ahora,
¿quién es ciego en mis ojos?
Unas manos pasaban sobre mi rostro y envejecían dulcemente. ¿Qué
fue existir entre cuerdas y espíritus?
¿Quién fui en los brazos de mi madre, quién fui en mi propio corazón?
Es extraño:
solamente he aprendido a desconocer y olvidar. Es extraño:
ahora, el amor
habita en el olvido.


Poema de Antonio Gamoneda incluido en Extravío en la luz (con grabados de Juan Carlos Mestre) e que aparecerá no seu próximo libro Canción errónea. De: El País. Madrid, 7/3/2009.

10.3.09

Domingos da Mota: "Muros"

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MUROS

Vivemos a dois
passos, tão distantes, com
muros de silêncio

de permeio.
Os muros altos, farpados,
arrogantes.

8.3.09

Vanguarda e fetiche

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 7 de março:


Vanguarda e fetiche


DE MANEIRA geral, as teses vanguardistas são verdadeiras na medida em que abrem caminhos, e falsas na medida em que os fecham. João Cabral de Melo Neto, por exemplo, julgava inferior a poesia que falasse "de coisas já poéticas", pois acreditava que a poesia devia procurar "elevar o não-poético à categoria de poético".

Essas teses se tornaram dogmas entre muitos jovens poetas. Ora, para começo de conversa, é questionável a tentativa de tomar a temática de uma obra de arte como base para pronunciar juízos estéticos sobre ela.

Tais teses não são verdadeiras senão pela metade. No caso mencionado, são verdadeiras porquanto afirmam que a poesia não precisa falar de coisas já poéticas; por outro lado, porquanto implicam proibir a poesia de falar de coisas já poéticas, são falsas.

Afinal, o que é uma coisa já poética senão uma coisa de que a poesia já falou ou de que já falou muito? E por que não poderia um poeta fazer excelente poesia ao falar de algo de que muitos outros poetas já tenham falado? Então Goethe não deveria ter escrito a sua obra-prima porque já houvera, antes dele, não sei quantos "Faustos"?

Jamais um grande poeta temeu abordar pela enésima vez um tema poético (Fausto, Ulisses, Orfeu, Narciso, a brevidade da vida, a juventude, a velhice, o sol, a noite, o amor, a saudade, a beleza etc.). Ele o aborda e é capaz de fazê-lo como se ninguém antes o tivesse feito: como se não fosse um tema poético. Só o poeta fraco quer fazer algo tão "novo" que não possa ser comparado com o que os grandes mestres do passado já fizeram. O poeta forte, longe de temer tal comparação, provoca-a.

É claro que ao que afirmar que os poetas fortes não temem tema algum, não tenho a menor intenção de insinuar que Cabral seja um poeta fraco. Cabral não temia coisa alguma: ele estava apenas, de acordo com o ethos vanguardista, proscrevendo aquilo que pensava haver superado.

Ao se opor aos temas poéticos tradicionais, Cabral estava reagindo contra preconceitos arraigados que haviam sido usados para desclassificar a sua própria produção poética. Sérgio Buarque de Hollanda relata que Domingos Carvalho da Silva, por exemplo, membro do grupo conhecido como Geração de 45, ao qual o próprio Cabral havia pertencido, "decretara que o bom verso não contém esdrúxulas (apesar de Camões), que a palavra "fruta" deve ser desterrada da poesia, em favor de "fruto", e a palavra "cachorro" igualmente abolida, em proveito de "cão'; e mais, que o oceano Pacífico (adeus Melville e Gauguin!) não é nada poético, bem ao oposto do que sucede com seu vizinho, o oceano Índico".

Ora, já na primeira estrofe de "Cão sem Plumas", João Cabral infringe dois desses tabus: "A cidade é passada pelo rio / como uma rua / é passada por um cachorro; / uma fruta / por uma espada".

O que ocorre é que se, antes do modernismo, determinadas formas haviam sido fetichizadas, isto é, se a elas (por exemplo, às rimas) atribuíam-se determinados poderes, o legado da vanguarda foi a desfetichização dessas formas tradicionais.

Mencionei um poeta que atribui às palavras "fruto", "cão" e "Oceano Índico" certa virtus poética da qual as palavras "fruta", "cachorro" e "Oceano Pacífico" são carentes. Ora, ao desencantar as formas encantadas, a vanguarda mostrou que na poesia ou no poético não existe prêt-à-porter à disposição do poeta, nestas ou naquelas formas fixas ou rimas ou metros ou palavras.

Inversamente, mostrou também que a poesia não é necessariamente incompatível com nenhuma forma determinada. Isso implica o reconhecimento de que a poesia se encontra somente em obras singulares, onde é o produto de uma combinação imprevisível e irreproduzível de fatores que não podem ser definidos a priori.

Mas essa descoberta é o resultado final da atividade das vanguardas: é o que ficou depois que elas terminaram o seu trabalho, isto é, depois que percorreram o caminho que nos trouxe da pré-modernidade à modernidade plena.

Esse caminho, porém, não foi uma linha reta. A história nunca é assim. Antes de desfetichizar as formas tradicionais, a vanguarda as manteve fetichizadas, porém inverteu o valor desse feitiço.

Se tradicionalmente as formas convencionais haviam sido as únicas formas admissíveis na poesia, a vanguarda passou a tomá-las como as únicas formas inadmissíveis na poesia. Foi assim que Cabral proscreveu justamente os temas tradicionalmente poéticos.

6.3.09

A liberdade e o juízo de valor na poesia

Publico a seguir a entrevista que dei ao Héber Sales (cujo blog de poesia, que recomendo, é o Coisas para fazer com palavras). A entrevista foi publicada pela Cronópios.



Por Héber Sales





Filósofo, poeta e compositor, parceiro, entre outros, de Marina Lima, Adriana Calcanhoto, João Bosco e Lulu Santos, Antonio Cicero publicou em 2006 o livro Finalidades sem Fim, uma obra que o coloca, a meu ver, no centro de um espaço ainda muito carente na poesia brasileira: o espaço de uma reflexão unificadora e sistemática sobre a arte. Não é uma posição fácil, já que vivemos num tempo em que todo juízo é relativizado, as grande narrativas são vistas com desconfiança e debater o gosto se tornou politicamente incorreto. Talvez por esses motivos, os ensaios de Finalidades sem Fim ainda não mereceram a devida atenção entre nós, especialmente na academia brasileira, onde eles deveriam estar sendo lidos com entusiasmo. Nesta entrevista, trago a vocês a parte central de um longo bate-papo que Antonio Cicero e eu tivemos há alguns meses. O ponto de partida foi a minha inquietação diante da sua tese do fim das vanguardas. Segundo o filósofo, não há e nem haverá mais vanguardas porque elas já cumpriram o seu papel de desprovincializar a arte e afirmar a validade de toda forma de poesia - o que não significa dizer que todo poema é bom e nem que não haja mais experimentação poética. É a partir dessa afirmação que se desenvolve a nossa sabatina com Antonio Cicero. Vamos a ela.



Héber Sales: Se, como você sustenta no livro Finalidades sem Fim, a desprovincialização da poesia nos permite todas as formas, se a poesia hoje não consiste em nenhuma forma específica, o que é poesia afinal? O que a distingue de outros gêneros?

Antonio Cicero: Tanto sobre o que distingue a poesia de outros gêneros quanto sobre o valor de um poema, um dos caminhos que tenho seguido diz respeito ao grau de escritura de um texto. Considero o poema o mais escrito dos escritos.

Héber Sales: Qual seria então, por exemplo, a diferença entre o poema e o ditado? Enquanto textos prontos e acabados, os ditados parecem compartilhar com o poema muitas das especificidades deste: 1) neles também não se separa O QUE se diz da forma COMO se diz; 2) daí serem igualmente resistentes à paráfrase e à tradução; 3) além disso, eles são entesouráveis, ou seja, são um patrimônio da língua (não sofrem de descartabilidade). A meu ver, a única diferença entre o ditado e os poema seria que, ao contrário deste, o ditado costuma ser usado com uma finalidade cognitiva ou prática. Mas essa distinção poderia ser anulada, e um ditado elevado à condição de poema, caso ele fosse apresentado como objeto sem função específica por uma pessoa socialmente autorizada para tal: ou seja, se um poeta apresentar um ditado como poema, quem irá dizer que não o é, especialmente se o autor usar padrões reconhecidamente poéticos? Será que, no final das contas, poesia não seria simplesmente aquilo que os poetas dizem ser poesia?

Antonio Cicero: Suas observações são pertinentes, você percebeu coisas importantes. Você observa que caracterizo o poema, enquanto poema, como "um objeto artificial de caráter formal desprovido de qualquer função determinada". De fato, para mim, essa é uma das descrições que chegam mais perto de determinar o que é um poema, SEM A UTILIZAÇÃO DE QUALQUER JUÍZO DE VALOR. Entretanto, não creio que seja possível determinar totalmente o que é um poema sem a utilização de juízos de valor.

Um ditado, uma vez retirado de todo contexto utilitário ou cognitivo, poderia ser considerado como um poema. Publicado numa revista literária, mesmo sem versos ou título (como os poemas concretos), ele seria considerado como poema: o que uma revista literária faz é exatamente retirá-lo de qualquer contexto utilitário ou cognitivo e apresentá-lo à apreciação estética. O mesmo ocorre, naturalmente, quando Duchamp retira um urinol do seu contexto utilitário ou cognitivo e o expõe num museu: ele passa a ser considerado como obra de arte.

Examinemos bem o que eu disse: retirado do seu contexto utilitário ou cognitivo, um objeto (que pode ser verbal, como no caso de um poema) passa a ser CONSIDERADO como se considera uma obra de arte. Será que isso quer dizer que ele já é, então, uma obra de arte? Não necessariamente. Eu posso olhar para um pretenso poema numa revista – isto é, um texto que pede para ser considerado como um poema – e dizer: isso não é um poema; é uma bobagem. E se esse juízo se generalizar, é provável que o pretenso poema seja esquecido, que acabe sendo, realmente, considerado apenas uma bobagem por todo o mundo, e que não chegue a ser visto como obra de arte.

Héber Sales: Em que condições então podemos dizer que um texto que se diz poema é um poema, e dos bons?

Antonio Cicero: O que ocorre é que não é possível determinar de modo puramente descritivo se algo é um poema ou não. Para determinar se algo é um poema, entra em jogo, além da descrição que dei acima ("um objeto artificial de caráter formal desprovido de qualquer função determinada"), algo que pode ser objeto de discussão, mas não pode ser objeto de prova. Refiro-me a um juízo de valor. Além de ser “um objeto artificial de caráter formal desprovido de qualquer função determinada”, um poema é um objeto que consideramos valer por si, sem necessidade de justificativa ulterior: um objeto ao qual damos valor, sem que tenhamos nenhum interesse ulterior na existência dele.

Héber Sales: E quando é que uma obra de arte vale por si?

Antonio Cicero: Quando, mesmo sem nenhuma finalidade biológica, prática ou cognitiva, ela mobiliza, vitaliza e faz interagirem no mais alto grau as nossas faculdades, as nossas capacidades, os nossos recursos. Quando ela nos atrai e nos faz pensar nela com vários dos recursos de que dispomos: inteligência, razão, cultura, sensibilidade, sensualidade, emoção, senso de humor etc. Está justamente na provocação e na mobilização dos nossos recursos o valor dela. Um poema que não faça nada disso, ou que o faça muito pouco, não é bom, ou mesmo não é um poema.

Héber Sales: Não seria esse um conceito muito subjetivo e, portanto, relativo? Ele parece justificar a posição daqueles que dizem que cada um deve decidir o que é um poema...

Antonio Cicero: Quando digo que um texto é um poema, ou que é um poema bom, não estou dizendo meramente que gosto dele, mas que todo o mundo que o considere desinteressadamente DEVE reconhecer que se trata de um poema. Se não fosse assim, valeria aqui o ditado “gosto não se discute”. Ora, todo o mundo sabe que o que mais se discute é gosto, quando se refere a obras de arte. Por outro lado, se digo “eu gosto de abacate”, não pretendo o mesmo. Não acho que todo o mundo que seja despreconceituoso DEVA gostar de abacate. É aqui que vale o ditado “gosto não se discute”.

Há, sem dúvida, muita discussão sobre determinados textos. Mas essas discussões mesmas mostram que há alguns terrenos em comum entre os que dela participam. Não se pode provar por a + b que tal texto seja um grande poema, mas milhões de páginas têm sido escritas, há séculos, para argumentar que tais ou quais textos são (ou não são) grandes poemas. Com o tempo, alguns textos acabam sendo reconhecidos QUASE universalmente como clássicos ou canônicos. São textos que entraram para a língua.

Sobre isso, quero comentar uma vez mais a sua observação sobre os ditados populares, o que pode ajudar a compreender o que quero dizer. Os gregos arcaicos, que ainda não empregavam a escrita, como Homero, usavam a mesma palavra – epos – para denominar poema épico, palavra, ditado, gnoma, canção curta etc. (Falo disso no ensaio Epos e mythos em Homero, publicado no meu livro Finalidades sem Fim). O que tinham essas coisas todas em comum? Elas eram memorizadas e, por isso, reiteráveis, ao contrário das falas cotidianas: elas faziam, por isso, parte da língua. Por que eram memorizadas? Com exceção, é claro, dos poemas e das canções, essas coisas eram memorizadas porque se considerava que tinham uma função utilitária na língua. Quem decidia? Ninguém em particular e todo o mundo em geral. Quem decide, ainda hoje se um sintagma qualquer entra para a língua? Ninguém em particular e todo o mundo em geral. Eu posso resolver inventar uma palavra nova e defini-la. Ela pode parecer muito com as outras palavras. Entretanto, não sou eu nem ninguém em particular quem decide se ela vai ser uma palavra ou não, mas o fato de que ela "pegue": de que seja, em geral, usada como uma palavra. O mesmo ocorre com um ditado.

Pois um poema entra para a língua quando se considera, QUASE universalmente, que ele vale por si.

Héber Sales: O teu livro Finalidades sem fim descortina um horizonte muito amplo para o poema. Ele nos convida a penetrar no território da poesia de maneira direta, sem que confundamos os meios (formas/modelos poéticas) com o fim (provocar o livre jogo entre as faculdades do conhecimento). Por outro lado, o conceito de poema defendido nele me parece às vezes tão largo ao ponto de confundir as fronteiras tradicionalmente estabelecidas entre os gêneros. A prosa de Guimarães Rosa, por exemplo. Por que não considerá-la poema, uma vez que ela possui em alto grau aquela que para você é a virtude maior dos poemas (ser o mais escrito dos escritos)?

Antonio Cicero: Fico muito feliz de você ter gostado do Finalidades sem Fim. Concordo inteiramente com você sobre as fronteiras tradicionais entre os gêneros. Como as distinções baseadas na forma se revelaram puramente convencionais, elas se tornaram fluidas para nós. Assim, você tem toda razão em relação a Guimarães Rosa, por exemplo.

Héber Sales: Noto uma aproximação muito grande entre teu conceito de poema e a teoria de Jakobson. Refiro-me à tese de que o valor do poema não é dado pelo que ele possa dizer de alguma coisa, mas pela forma como ele o diz: nele não se pode separar significante de significado. Ora, parece-me que você está dizendo, em outras palavras, o mesmo que o russo afirmou, ou seja: que os textos poéticos distinguem-se pelo fato de terem como principal assunto a linguagem em si (o código): mesmo quando parecem dizer alguma coisa, estão, na verdade, tratando, como assunto principal, da linguagem em si e, eu acrescentaria, do poder encantatório dela. Ora, nada me parece mais verdadeiro em relação à obra de Guimarães Rosa do que isso.

Antonio Cicero: Quanto a Jakobson, você o torna mais próximo quando fala do "poder encantatório" da palavra. Mas é também possível lê-lo por um viés excessivamente formalista, que não tem tanto a ver com o que penso.

Héber Sales: Finalmente, o que a tua poesia tem a ver com o que o filósofo Antonio Cicero pensa? Em que medida ela é influenciada e moldada pelas teses que lemos nos ensaios de Finalidades sem Fim? Como se dá essa relação entre poesia e filosofia em teu trabalho? O que uma tem a dizer à outra em tua obra?

Antonio Cicero: Grande parte do que digo sobre a poesia é resultado de minhas experiências de leitura, em primeiro lugar, e de produção de poemas, em segundo lugar. Depois, em terceiro lugar, entra em jogo tudo o que li sobre a poesia, quer tenha sido por poetas, quer por teóricos, críticos, filósofos. Comparo essas teorias com minha própria experiência de ler poemas, de escrevê-los e de pensar sobre a poesia. A partir da minha formação filosófica, formulo então as minhas concepções sobre esse assunto. Naturalmente, essas concepções, retroativamente, se refletem de alguma maneira no meu modo de fazer poesia: mas penso que, em última análise, a minha experiência de leitura e de feitura de poemas é determinante em relação à teorização sobre a poesia.




Héber Sales é poeta, profissional de marketing, articulista e professor. Mantém o blog Coisas para fazer com palavras e tem textos publicados em revistas e sites como Digestivo Cultural, Portal Literal, Germina, Webinsider e Diversos Afins. E-mail: hebersales@gmail.com

3.3.09

Luís Cernuda: "En medio de la multitud" / "Em meio à multidão"

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En medio de la multitud


En medio de la multitud le vi pasar, con sus ojos tan rubios como la cabellera. Marchaba abriendo el aire y los cuerpos; una mujer se arrodilló a su paso. Yo sentí cómo la sangre desertaba mis venas gota a gota.

Vacío, anduve sin rumbo por la ciudad. Gentes extrañas pasaban a mi lado sin verme. Un cuerpo se derritió con leve susurro al tropezarme. Anduve más y más.

No sentía mis pies. Quise cogerlos en mi mano y no hallé mis manos; quise gritar, y no hallé mi voz. La niebla me envolvía.

Me pesaba la vida como un remordimiento; quise arrojarla de mí. Mas era imposible, porque estaba muerto y andaba entre los muertos.



Em meio à multidão


Em meio à multidão o vi passar, com seus olhos tão louros quanto a cabeleira. Caminhava abrindo o ar e os corpos; uma mulher se ajoelhou a seu passo. Eu senti como o sangue desertava minhas veias gota a gota.

Vazio, andei sem rumo pela cidade. Pessoas estranhas passavam a meu lado sem me ver. Um corpo se derreteu com leve sussurro ao tropeçar em mim. Andei mais e mais.

Não sentia meus pés. Quis segurá-los com a mão e não achei minhas mãos; quis gritar, e não achei minha voz. A névoa me envolvia.

Pesava-me a vida como um remorso; quis arremessá-la de mim. Mas era impossível, porque estava morto e andava entre os mortos.

1.3.09

Em Portugal

Há duas semanas participei das Correntes d'Escritas, um encontro de escritores de expressão ibérica que tem lugar anualmente em Póvoa de Varzim, no norte de Portugal, a poucos quilômetros do Porto. Os brasileiros eram, além de mim, Adriana Lisboa, Amílcar Bettega, Daniel Galera, Eucanaã Ferraz, Ivan Juqueira, João Paulo Cuenca, Ledo Ivo, Luiz Antonio de Assis Brasil, Luis Fernando Veríssimo e Moacyr Scliar. “Dias lindos, pouco frio, e não envergonhamos a pátria”, como resumiu Veríssimo na sua coluna de O Globo.

Tanto em Póvoa quanto, depois, em Lisboa, lancei a edição portuguesa do meu ensaio filosófico O mundo desde o fim. Tenho a impressão de que os livros de filosofia conseguem realizar a proeza de vender ainda menos que os de poesia. Por essa e outras razões, sou muito grato aos meus editores – tanto ao brasileiro quanto ao português – por terem ousado publicar esse livro. São ambos meus queridos amigos: Carlos Leal, da editora Francisco Alves, do Rio, e Jorge Reis-Sá, da editora Quasi, de Vila Nova de Famalicão.

Em Lisboa, meu livro foi lançado na mesma ocasião em que Eucanaã Ferraz lançou o seu Cinemateca, também pela Quasi. O poeta Gastão Cruz apresentou o livro de Eucanaã e a escritora Inês Pedrosa, diretora da Casa Fernando Pessoa, onde se deu o lançamento, o meu.

Esses lançamentos de Lisboa foram a primeira realização do Projeto Transatlântica. Promovido pela Casa Fernando Pessoa em conjunto com a jornalista e guionista Beth Ritto, Transatlântica se propõe a “revelar talentos e promover a troca de informações entre artistas, escritores, produtores, artistas plásticos, cineastas, designers, editores, jornalistas, gente que vive, cria e transforma a realidade através da cultura e suas várias interpretações. Transatlântica é uma mostra itinerante sobre o que acontece de melhor e mais criativo na produção cultural do Brasil e Portugal”.

A seguir publico uma crônica de Inês Pedrosa – publicada no Expresso, de Lisboa, em 25 de fevereiro de 2009 – que captura muito bem o espírito das Correntes d’Escrita. Além disso, como Inês é uma grande escritora, são muito importantes para mim as palavras generosas com as quais, nessa mesma crônica, ela recomenda o meu livro O mundo desde o fim.


O milagre das "Correntes d'Escritas"

A ideia de que a cultura é um ornamento, um luxo que serve estatutos e vaidades, tem sido um acelerador das crises económicas em Portugal. Não só desta, que tem a vantagem de ser de importação - a malta não tem culpa, o poderoso mundo global e capitalista é que fez esta maldade. A modernidade é indissociável da consciência da crise - e o fulgurante filósofo que é Antonio Cicero prova-nos ("O mundo desde o fim", ensaio imperdível, edição Quasi) que estamos ainda e sempre na modernidade - os pós-modernismos são publicidade mal informada.

As "Correntes d'Escritas", festival anual de literatura ibero-americana realizado na Póvoa de Varzim, têm vindo a ser definidas como um "milagre" pela extraordinária mobilização de públicos que alcançam. Este ano, de 11 a 14 de Fevereiro, celebraram a sua décima edição com um número impressionante de participantes (128) - e um sucesso de público estrondoso. As sessões, no auditório municipal (300 lugares) estavam sempre abarrotadas - com gente de pé, ou enchendo as escadas - fosse às 10h30 ou às 22 horas. E o que se passava nessas sessões? Conversas ou palestras em torno de livros, do que nos move para os livros, do que encontramos neles. Simplesmente isto: escritores falando de livros - e veio gente de muitas partes do país para assistir a estas conversas, para ouvir os escritores que já conhece dos livros, ou para conhecer novos escritores. Que tipo de gente? Leitores. De várias idades e escalões sociais. Ao lado do auditório, uma livraria sempre cheia, onde muitos livros também esgotaram rapidamente.

Nem sempre foi assim: nos primeiros anos, o auditório não enchia. Mas os poucos que vinham gostavam tanto que passaram a palavra. E a organização foi mobilizando a população local, os professores, as escolas.

Poetas como os brasileiros Antonio Cicero e Eucanaã Ferraz regressavam, este ano, das sessões nas escolas (que as "Correntes" sempre promovem) surpreendidos com a qualidade das perguntas dos alunos, que, de facto, conheciam as suas obras. Na Póvoa não acontece essa vergonha, tão habitual, de um escritor ser convidado a falar perante uma turma que nunca leu um livro seu - apenas se limitou a imprimir a biografia do convidado da Internet. A única maneira de entusiasmar os jovens pela leitura é dar-lhes os livros a ler. Ajudá-los a descobrir o sentido de cada palavra. Demasiadas vezes, o escritor descobre, no local, que apenas está ali para encher o programa de actividades escolares - um nome para dourar um relatório. É contra esta concepção de cultura, postiça, decorativa, abusadora, que se desenham iniciativas como as "Correntes d'Escritas". A partir do trabalho insano, da carolice e do amor aos livros de alguns.

A Manuela Ribeiro e o Francisco Guedes, que são a alma criadora das "Correntes", trabalharam com persistência - essa persistência que tanto tem faltado, nos últimos anos, a nível governamental, no investimento cultural em Portugal. Não adianta fazer grandes eventos sem sequência, foguetórios frágeis - mas a política cultural oficial tem-se resumido a isso: na melhor das hipóteses, uma inconsequência de conferências tonitruantes, de esclarecidos para esclarecidos, uma confirmação interpares das excelências mútuas. O esforço de internacionalização da cultura portuguesa que na segunda metade da década de noventa se fez, com Manuel Maria Carrilho como ministro da Cultura, não teve continuidade - o que significa que morreu. O que as "Correntes d'Escritas" vieram demonstrar é que os livros, a literatura, são contagiosos - e mudam, de facto, a vida das pessoas. De todas as maneiras: dos encontros nas "Correntes" nasceram, pelo menos, dois casamentos. A música do mar azul e bravo, irrompendo pelas varandas do hotel que alberga o evento, é uma fonte de inesgotáveis inspirações.

Os milagres tecem-se de uma constelação de vontades, um sentido do encontro feito da atenção aos pormenores, de modo a que cada um se sinta, simultaneamente, acolhido e livre. É esse o segredo das "Correntes d'Escritas": criar um espaço de encontro descontraído, em que escritores, editores, jornalistas e simples leitores podem conversar sem cerimónias. As noites das "Correntes" enchem-se de histórias e risos, cumplicidades rápidas que nos darão alento para os dias futuros, para as horas de solidão em busca da palavra exacta ou de um bocado de mar que acenda o silêncio da noite.

Inês Pedrosa



In: Expresso. Lisboa, 25 de fevereiro de 2009