12.12.09

George Gordon Byron: estrofe 17 do canto IX de "Don Juan": tradução de Augusto de Campos




Don Juan

Canto IX

17
Que sais-je?, esse mote de Montaigne
É uma verdade mais do que curial.
É duvidoso tudo o que se ganhe
Por mais que nos pareça natural,
Certeza não existe, tudo é vão e
Fugaz como é a condição mortal.
Tão pouco nós sabemos desta vida
Que a dúvida da dúvida duvida.


17
'Que sais-je?' was the motto of Montaigne,
As also of the first academicians:
That all is dubious which man may attain,
Was one of their most favourite positions.
There 's no such thing as certainty, that 's plain
As any of Mortality's conditions;
So little do we know what we 're about in
This world, I doubt if doubt itself be doubting.



BYRON, George Gordon. Estrofe 17 do canto IX de "Don Juan". In: CAMPOS, Augusto de. Byron e Keats. Entreversos. Campinas: Unicamp, 2009.

17 comentários:

ADRIANO NUNES disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
ADRIANO NUNES disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Rafael disse...

Salvo má leitura da minha parte, a conotação irônica do orginal se perde na tradução.

Antonio Cicero disse...

Rafael,

Não concordo. Não penso que nada de importante se tenha perdido aqui.

ADRIANO NUNES disse...

Rafael,


Claro que sua leitura realmente foi má: Veja atentamente que todo sentido se mantém e que genialidade de Augusto ao transcriar as rimas!


Abraço,
Adriano Nunes.

Rafael disse...

PARTE 1: De fato, as rimas "Montaigne/ganhe/vão e" são o ponto forte da versão traduzida do poema. No entanto, a meu ver, como eu disse, o original tem uma carga irônica que se perde na tradução. Vou tentar me explicar. Os dois primeiros versos originais dizem, literalmente: "'Que sais-je?' era o mote de Montaigne, assim como dos primeiros acadêmicos". O que se afirma com isso? Que Montaigne e os primeiros acadêmicos tinham um mote e, portanto, uma postura filosófica. Concorda-se com essa postura? Discorda-se dela? Não sabemos. Só o que se afirma é que algumas figuras em particular, historicamente situadas (quais sejam Montaigne e os primeiros acadêmicos) partilhavam dela. Fala-se aqui do ceticismo (representado pelo lema "Que sais-je?") com objetividade e distanciamento, sem adesão nem rejeição. Já na versão traduzida desses mesmos versos ("Que sais-je?, esse mote de Montaigne / É uma verdade mais do que curial."), a adesão (ou a rejeição, caso se os leia em chave irônica) é total. Afirma-se que o mote em questão é "uma verdade", e ponto final. Ao contrário do que ocorria no original, não há aqui distanciamento algum entre o discurso filosófico do ceticismo e o discurso do poema. O que se afirmava na versão original? Que Montaigne e alguns outros filósofos não acreditavam na possibilidade da certeza. O que se afirma na versão traduzida? Que a certeza é impossível. Portanto, as duas versões, nesses dois primeiros versos, afirmam coisas bem distintas. Os dois versos seguintes, no original, dizem literalmente isto: "Que seja duvidoso tudo o que o homem possa atingir era uma das posições favoritas deles." Ou seja, continua-se aqui a falar, a partir de fora, sobre o discurso filosófico de outrem (dos céticos). No entanto, assume-se agora uma postura irônica em relação a esse discurso. Expõe-se o paradoxo de defender a impossibilidade da certeza... como uma certeza! Como é que os céticos podiam ter "posições favoritas" (e essa expressão potencializa o efeito cômico do texto) se todas as posições se equivalem e se perdem no mesmo mar de incerteza? A defesa convicta da impossibilidade da certeza é auto-contraditória. É o que se denuncia de forma ainda mais explicitamente cômica e irônica no verso seguinte, que diz, literalmente: "Não existe certeza, isso é óbvio". Trata-se de uma afirmação claramente (e propositalmente) auto-refutativa: se não existe certeza, nada é óbvio, mas, se nada é óbvio, não é óbvio que a certeza não exista. Ou seja, o poema está ironizando o ceticismo. Não é o que ocorre na versão traduzida dos versos correspondentes, que dizem: "É duvidoso tudo o que se ganhe / Por mais que nos pareça natural, / Certeza não existe, tudo é vão e /
Fugaz como é a condição mortal." Esses versos são simples paráfrases poéticas do discurso cético, dando seguimento à postura de adesão a esse discurso que se verificava nos versos anteriores. São afirmações categóricas, não sobre o ceticismo, mas sim sobre a certeza e sua impossibilidade. Não falam sobre o ceticismo, mas sim com o ceticismo. E não apontam ironicamente para o próprio caráter auto-contraditório. Se, nos dois primeiros versos da versão traduzida, a atitude de distanciamento e objetividade quanto ao ceticismo, presente no original, já estava ausente, aqui tampouco se percebe algum sinal da postura irônica do original em relação aos céticos. (Continua abaixo)

Rafael disse...

PARTE 2: Os versos finais do original dizem, literalmente: “Sabemos tão pouco sobre nós mesmos neste mundo que eu duvido se a própria dúvida duvida (ou seja duvidosa).” A frase em português é agramatical, mas a estrutura original é essa. “Duvido se a dúvida duvida”. Trata-se, como se vê, da expressão de uma dúvida. À qual a tradução responde, mais uma vez, com uma afirmação categórica e convicta: “Tão pouco nós sabemos desta vida / Que a dúvida da dúvida duvida.” No fecho do original, a ironia em relação ao ceticismo se mantém e se intensifica: pelo desenvolvimento da própria idéia central do ceticismo (a certeza não existe), chega-se à sua refutação (é impossível ter certeza de que a certeza não existe). No fecho da tradução, por outro lado, mantém-se a atitude de adesão ao ceticismo e de reiteração poética de suas posições filosóficas, atitude coerentemente sustentada ao longo do texto. Daí que eu afirme que a conotação irônica do original se perde na tradução.

Antonio Cicero disse...

Rafael,

Entendo a sua posição, mas não acho que, em última análise, ela se justifique. Por que? Porque, na segunda parte da estrofe, é já o sujeito da enunciação que diz: “There’s no such thing as certainty, that’s plain / As any of mortality’s conditions”; etc. Parece-me claramente que neste ponto ele concorda com os céticos acadêmicos e com Montaigne.

Nos últimos dois versos, dá-se, primeiro, mais uma confirmação da dúvida: ““So little do we know what we’re about in / This world [...]”; e depois, uma radicalização dela. Com isso, ele cai na dúvida pirrônica, que duvida de tudo, inclusive da própria dúvida: “I doubt if doubt itself be doubting”. A transformação da dúvida acadêmica em dúvida pirrônica parodia o que aconteceu historicamente. Que essa paródia é consciente fica claro da leitura dos dois primeiros versos da estrofe seguinte (que não foi traduzida por Augusto) que diz: “It is a pleasant voyage perhaps to float, / Like Pyrrho, on a sea of speculation”. De qualquer modo, a tradução de Augusto dos dois últimos versos da estrofe em discussão (“Tão pouco nós sabemos desta vida / Que a dúvida da dúvida duvida”) parece-me excelente, exprimindo a mesma dúvida pirrônica que os versos em inglês.

Em suma, penso que o sujeito da enunciação não só concorda com os acadêmicos, mas radicaliza a posição deles, o que o leva à posição pirrônica. Esta não é interpretada por ele, ou pelos pirrônicos, como uma auto-refutação do ceticismo, mas como a exacerbação dele. Trata-se, para eles, da expressão de uma aporia inevitável, pertencente à própria condição humana.

Anônimo disse...

De fato, “na segunda parte da estrofe, é já o sujeito da enunciação que diz: ‘There’s no such thing as certainty, that’s plain’”. No entanto, ele o faz de modo irônico, isto é, dizendo, implicitamente, o contrário do que diz de forma explícita. Eis o que ele diz, em tradução literal: “Não há certeza, isso é óbvio”... Em outras palavras: “Tenho certeza de que a certeza não existe.”... O evidente caráter auto-contraditório dessa afirmação torna inegável a intenção irônica com que ela é proferida. Sendo assim, não se pode dizer que “neste ponto ele (o sujeito da enunciação no poema) concorda com os céticos acadêmicos e com Montaigne”. Superficialmente, o que se afirma no verso em questão é: “A certeza não existe.” Porém, em função do modo claramente (e sobretudo comicamente) auto-contraditório com que essa afirmação é feita, fica claro que o que se quer realmente dizer é: “É incoerente e ridículo afirmar a inexistência da certeza como uma certeza.” Original e tradução dizem mais ou menos as mesmas coisas, no plano do conteúdo. No entanto, fazem-no de modos bastante distintos, no plano da forma, o que faz toda a diferença no fim das contas. A tradução procede por assertivas categóricas, afirmando a impossibilidade da certeza de modo convicto (isto é, dotado de certeza), sem dar sinais de estar consciente quanto ao paradoxo que isso implica nem de assumir uma postura irônica quanto a esse paradoxo. Já no original, a paradoxal certeza quanto à impossibilidade da certeza não reside apenas no modo como as afirmações são feitas; ela é afirmada explicitamente: “Não há certeza, isso é óbvio”; “Que tudo seja duvidoso era a posição favorita dos céticos”; etc. Esse procedimento torna evidentes o ridículo e a incoerência do ceticismo convicto. A presença desse procedimento no poema deixa clara a consciência, por parte deste, quanto àqueles ridículo e incoerência, bem como sua intenção de satirizá-los por meio da ironia, sendo esse o seu verdadeiro propósito. Nos versos finais, em ambas as versões, de fato ocorre exacerbação, radicalização da dúvida cética. Mas, novamente, isso se dá de modos diferentes, no plano da forma, o que acaba por fazer com que as versões, dizendo aparentemente a mesma coisa, terminem por dizer coisas opostas. De fato, a tradução simplesmente encampa a posição filosófica que o original ironiza (qual seja a do ceticismo convicto). Na versão traduzida, a radicalização da dúvida cética se dá por meio de uma afirmação categórica; no original, por meio da expressão de uma dúvida. Essa diferença não é um detalhe irrelevante. Ela faz com que as duas versões terminem, em última análise, por apontar em direções opostas. Enquanto, na tradução, a radicalização da dúvida cética simplesmente ratifica o ceticismo, no original, ela o refuta (pelo menos em sua versão convicta), isso também em função do que viera antes (isto é, aqueles versos em que a ironia quanto ao ceticismo era patente). Afirmar categoricamente que “a dúvida duvida da dúvida” é simplesmente subscrever o discurso cético, sem mostrar nenhuma consciência ou ironia quanto ao paradoxo do ceticismo convicto. Por outro lado, duvidar se a dúvida duvida (ou é duvidosa) é colocar o ceticismo convicto em xeque, procedendo, é verdade, pela radicalização de suas próprias premissas, mas não de modo a confirmá-lo, e sim de modo a expor suas limitações. Dessa atitude de ironia quanto ao que tenho chamado aqui de “ceticismo convicto” (atitude esta que é o ponto central do poema, a meu ver), bem como das soluções verbais admiráveis com que ela se expressa (ex.: “There’s no such thing as certainty, that’s plain”, um verso extremamente engenhoso e engraçado), a tradução passa a anos luz de distância.

ADRIANO NUNES disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Antonio Cicero disse...

Rafael,

Sobre assuntos como esse, não há prova por a + b. Por isso, provavelmente, não vamos chegar a lugar nenhum, mas vou agora resumir -- de uma vez por todas -- o que penso.

A sua interpretação não é absurda. Não a acho, porém, plausível. Você diz que “There’s no such thing as certainty, that’s plain” equivale a algo como “It is certain that certainty doesn’t exist”. Ora isso não é tão claro assim. A sua paráfrase já é uma crítica: crítica que ele, Byron, não fez necessariamente, já que seu enunciado foi outro. Hoje mesmo, inúmeros filósofos, digamos, “pós-modernos”, afirmam que “Não há Verdade”, sem se dar conta de que se auto-refutam. Se você parafraseasse o que ele dizem no enunciado “A verdade é que não há Verdade”, a evidência da auto-refutação seria inteiramente diferente, para eles mesmos. E não se esqueça de que, no caso do ceticismo, o pirronismo se considerava, como eu disse, uma radicalização, e não uma refutação, do ceticismo.

Quanto à afirmação “a dúvida duvida da dúvida”, concordo com Adriano: se há ironia no original, também há aqui.

De todo modo, dificilmente Byron seria irônico em relação a Montaigne, que ele admirava imensamente. A prova é que Byron gravou a frase aqui citada, “Que sçais-je?” numa medalha. Sobre o poema “Don Juan”, Byron dizia que tencionava que fosse “uma espécie de Tristan Shandy ou dos Ensaios de Montaigne poéticos, com uma estória para articulá-la”.

James Hamilton Browne, que viajou para a Grécia com Byron no navio Hércules conta que “na passagem à Cefalônia, Byron lia principalmente as obras de Swift. Ele também tinha por regra constante ler atentamente todo dia um ou mais dos Ensaios de Montaigne”.

Essas informações se encontram no ensaio de Anne Fleming, “Byron and Montaigne”, no The Byron Journal, vol.37, 2009.

Finalmente, é conhecida a frase dele em carta para Francis Hodgson (de dezembro de 1811):

“There is something pagan in me that I cannot shake off. In short, I deny nothing, but I doubt everything”: “Há algo pagão em mim de que não consigo me livrar. Em suma, não nego nada, mas duvido de tudo”. “Duvido de tudo”: Acho que quem diz isso é muito bem capaz de dizer, sem ironia, “There’s no such thing as certainty, that’s plain”.

Rafael disse...

Antonio Cicero, você tem razão: "Sobre assuntos como esse, não há prova por a + b"; há apenas argumentações mais ou menos arbitrárias, mais ou menos fundamentadas em elementos do texto. O vocábulo "plain" significa "óbvio, claro, evidente, manifesto". Isso é um fato. Logo, "There's no such thing as certainty, that's plain" = "There's no such thing as certainty, that's óbvio, claro, evidente, manifesto". Como não enxergar ironia nessa afirmação? Afinal, o que é óbvio, claro, evidente, manifesto, é indubitável. Como afirmar, sem ironia, que a inexistência da certeza é indubitável? A admiração pessoal de Byron por Montaigne, por mais bem documentada que seja, não me parece nem um pouco relevante para a discussão em curso. O objeto dessa discussão, no que me diz respeito pelo menos, não são as supostas intenções de Byron ao escrever "Don Juan", mas sim um dado texto, ou melhor, dois, a relação entre eles e as possibilidades de leitura que instauram, a partir das palavras de que se compõem e da ordem em que essas palavras se dispõem neles. Como sabe qualquer calouro de curso de Letras, a voz que fala no poema não pode ser simplesmente identificada com a voz "do poeta". Assim sendo, o que está em questão aqui não é a posição de Byron quanto a Montaigne. Nem tampouco a posição "do pirronismo" quanto ao ceticismo. Para início de conversa, é bastante temerário afirmar que "o pirronismo" se pretendia isso ou aquilo, como se "o pirronismo" fosse uma escola ou uma doutrina coesa, unívoca, cujas idéias fossem perfeitamente claras e conhecidas de todos. Pirro nunca escreveu nada. O que sabemos dele nos vem de fragmentos de comentadores citados por terceiros. A relação entre pirronismo e ceticismo está longe de ser consensualmente reconhecida como sendo esta ou aquela. Em Montaigne, como na maioria dos textos modernos, o termo "pirronismo" aparece, via de regra, como um simples sinônimo de "ceticismo". E o que realmente importa aqui é o seguinte: a radicalização da dúvida cética (quer a classifiquemos como "pirrônica", quer não) pode conduzir tanto à ratificação do ceticismo quanto à sua refutação. Na versão traduzida do poema, a dúvida da dúvida é afirmada como um ponto de doutrina, que, portanto, só ratifica um ceticismo convicto, sem consciência de seu próprio caráter auto-contraditório. Na versão original, a dúvida da dúvida se expressa como uma dúvida de fato ("I doubt if" = "Eu duvido se"), que põe o ceticismo convicto em xeque. Dizer que, nesse ponto, há tanta ironia no original quanto na tradução é dizer que não faz diferença afirmar um ponto de doutrina ou expressar uma dúvida autêntica, o que, obviamente, não é verdade, principalmente em se tratando de poesia. Para fazer uma afirmação desse tipo, é preciso muita insensibilidade para a forma do dizer e uma ênfase excessivamente grande no seu conteúdo. De fato, os conteúdos coincidem nos versos finais do original e da tradução, mas as formas divergem frontalmente, e isso é decisivo.

Antonio Cicero disse...

Rafael,

Respondo a cada um dos seus argumentos, que estão em itálico:

O vocábulo "plain" significa "óbvio, claro, evidente, manifesto". Isso é um fato.

Está bem.

Logo, "There's no such thing as certainty, that's plain" = "There's no such thing as certainty, that's óbvio, claro, evidente, manifesto".

Está bem.

Como não enxergar ironia nessa afirmação? Afinal, o que é óbvio, claro, evidente, manifesto, é indubitável.

Aqui já há um outro passo, que já não está tão bem: e ele é seu, não de Byron. Primeiro, ele usou porque quis a palavra “plain” e não a palavra “doubtless” ou, melhor ainda, “certain”; segundo, nada garante que, mesmo se tivesse dito “certain”, sua intenção não fosse simplesmente afirmar como verdadeiro um paradoxo, com a intenção de mostrar mais claramente ainda a onipresença da dúvida e sem nenhuma ideia de estar incorrendo em autocontradição performativa.

Você pergunta:

Como afirmar, sem ironia, que a inexistência da certeza é indubitável?

Pois eu respondo: do mesmo modo que, há pouco tempo, Paul Veyne, num livro escrito para elogiar Foucault (Foucault. Sa pensée, sa personne), atribui a ele, sem nenhuma ironia, a tese de que “todas as ideias gerais são falsas”. É concebível que alguém, daqui a dois séculos, leia essa tese e diga, de modo análogo ao que você faz com Byron: “Trata-se evidentemente de ironia, pois a tese “todas as ideias gerais são falsas” é evidentemente uma ideia geral; ora, como poderia ele pensar ser falsa a ideia geral que ele está a afirmar como verdadeira?” Parece lógico? Sim, mas acontece que seria uma conclusão falsa, pois Veyne não teve a menor intenção de dizer isso ironicamente. Simplesmente, como é tão comum, não lhe ocorreu que estivesse incorrendo numa autocontradição performativa. Ele praticou o que em “O mundo desde o fim” chamo de “oclusão do polo negativo”. No caso de Byron, como eu disse, ele pode estar simplesmente a usar um argumento pirrônico. Aliás, aqui salto para outra afirmação sua:

Para início de conversa, é bastante temerário afirmar que "o pirronismo" se pretendia isso ou aquilo, como se "o pirronismo" fosse uma escola ou uma doutrina coesa, unívoca, cujas idéias fossem perfeitamente claras e conhecidas de todos. Pirro nunca escreveu nada. O que sabemos dele nos vem de fragmentos de comentadores citados por terceiros. A relação entre pirronismo e ceticismo está longe de ser consensualmente reconhecida como sendo esta ou aquela.

Não é bem assim. Os tratados de Sextus Empiricus Pyrrhoniae hypotyposes e Adversus mathematicos funcionaram, desde sua tradução para o latim, no século XVI, como manuais do pirronismo, tendo tido uma influência enorme. E Sextus critica o ceticismo acadêmico.

CONTINUA

Antonio Cicero disse...

CONTINUAÇÃO

Em Montaigne, como na maioria dos textos modernos, o termo "pirronismo" aparece, via de regra, como um simples sinônimo de "ceticismo".

Claro, pois Montaigne leu e assimilou Sextus.

A admiração pessoal de Byron por Montaigne, por mais bem documentada que seja, não me parece nem um pouco relevante para a discussão em curso. O objeto dessa discussão, no que me diz respeito pelo menos, não são as supostas intenções de Byron ao escrever "Don Juan", mas sim um dado texto, ou melhor, dois, a relação entre eles e as possibilidades de leitura que instauram, a partir das palavras de que se compõem e da ordem em que essas palavras se dispõem neles. Como sabe qualquer calouro de curso de Letras, a voz que fala no poema não pode ser simplesmente identificada com a voz "do poeta". Assim sendo, o que está em questão aqui não é a posição de Byron quanto a Montaigne.

Acho que, realmente, essa não é a questão principal, mas aqui interessa acessoriamente, pois a questão diz também respeito às possíveis intenções de Byron.

E o que realmente importa aqui é o seguinte: a radicalização da dúvida cética (quer a classifiquemos como "pirrônica", quer não) pode conduzir tanto à ratificação do ceticismo quanto à sua refutação. Na versão traduzida do poema, a dúvida da dúvida é afirmada como um ponto de doutrina, que, portanto, só ratifica um ceticismo convicto, sem consciência de seu próprio caráter auto-contraditório. Na versão original, a dúvida da dúvida se expressa como uma dúvida de fato ("I doubt if" = "Eu duvido se"), que põe o ceticismo convicto em xeque. Dizer que, nesse ponto, há tanta ironia no original quanto na tradução é dizer que não faz diferença afirmar um ponto de doutrina ou expressar uma dúvida autêntica, o que, obviamente, não é verdade, principalmente em se tratando de poesia. Para fazer uma afirmação desse tipo, é preciso muita insensibilidade para a forma do dizer e uma ênfase excessivamente grande no seu conteúdo. De fato, os conteúdos coincidem nos versos finais do original e da tradução, mas as formas divergem frontalmente, e isso é decisivo.

Do meu ponto de vista, o que ocorre é simplesmente o seguinte: a dúvida da dúvida faz parte do ceticismo pirrônico, como questão de doutrina; logo, quando Byron diz que duvida da dúvida, está apenas exprimindo essa doutrina.

Rafael disse...

Antonio Cícero, tenho que admitir que você tem razão. A rigor, nada garante ou prova, objetiva e absolutamente, que o verso “There’s no such thing as certainty, that’s plain” comporte ironia. Assim como nada prova a carga irônica da seguinte estrofe: “Vai por cinqüenta anos / Que lhes dei a norma: / Reduzi sem danos / A fôrmas a forma.” Daqui a 200 anos (que digo, daqui a dois minutos), pode ser que alguém venha a ler isso como uma estrofe seriamente pró-parnasiana... E não haveria garantia ou prova alguma a opor a essa leitura. Poder-se-ia argumentar com uma série de dados da biografia do Bandeira, do contexto histórico ou mesmo de outras obras do autor, mas nada disso provaria coisa alguma quanto ao poema em questão particularmente, e a possibilidade de lê-lo em chave não-irônica, a rigor, permaneceria de pé. Resta-nos apenas esperar que os leitores do futuro tenham bom-senso e sensibilidade o bastante para não fazê-lo. Aliás, sensibilidade, a meu ver, é justamente o que falta a uma afirmação como esta: “a dúvida da dúvida faz parte do ceticismo pirrônico, como questão de doutrina; logo, quando Byron diz que duvida da dúvida, está apenas exprimindo essa doutrina”. De fato, o conteúdo do verso em questão é “a dúvida pirrônica” (se quisermos chamá-lo assim), mas a forma como esse conteúdo se expressa ali não é doutrinária, e sim subversiva. Não se exprime doutrina nenhuma ali (por mais que, no plano do conteúdo – e apenas nele – possa haver coincidência com as idéias de certa doutrina), mas sim subverte-se a doutrina alheia. Para dizer o que você diz sobre o verso, é preciso se concentrar exclusivamente no conteúdo e fechar os olhos para a forma. Ora, ler poesia de olhos fechados para a forma é uma boa maneira de deixar escapar o essencial. Obviamente, se você contra-argumentar dizendo que “nada garante ou prova, objetiva e absolutamente, que a forma da expressão no verso em questão seja subversiva, e não doutrinária”, mais uma vez, serei obrigado a lhe dar razão.

Lucas Zaparolli de Agustini disse...

Caros senhores, eu, que tenho dedicado anos a traduzir "Don Juan" de Byron, venho aqui acrescentar minha opinião a respeito desta estrofe.

Acho que todos os comentários são pertinentes e todos dizem a verdade, rs.

Creio, sim, que, como dito num dos primeiros comentários, a tradução da "frase" seja "agramatical" (Rafael).

Creio, sim, que a tradução e o original apontam para direções opostas (Anônimo).

E creio, sim, que ainda assim há uma nuance de ironia na tradução de Augusto de Campos, como sustenta o dono desse excelente blog, Antonio Cicero. Tornando ambos os textos irônicos e, sim, sendo uma tradução correta de versos de Byron, embora nem genial, e muito menos "make it new", como manda, em geral, a poética da tradução concreta.

Entretanto, discordo de todos no que concerne à apreciação das rimas que, para mim, não possuem nada demais. Como podem perceber no original, Byron não faz o malabarismo de rimar /ei-ne/ com "ão e", ele simplesmente rima com "ain" /en/. Já a rima do dístico de Byron é excelente, arrematando genialmente a estrofe com chave de ouro e rima rica, leonina, rima em mosaico, ou split-rhymes, como queiram chamar, o que não ocorre em mesmo nível na tradução. Mas é uma tarefa árdua demais e ingrata para poetas que precisam fazer tudo e mais um pouco para poder viver de luz nesse país, então todo esforço deve ser elogiado. E gerar discussão é tão valioso quanto as tentativas de tradução ou, como diz Francis Aubert, as traduções que nós cometemos.

É necessário esclarecer que a tradução de Augusto recria, isto é, reinventa o sentido, mas não propõe maiores recriações no âmbito da forma. No aspecto da forma, parece mesmo se basear num Byron certinho, seguindo à risca a métrica, quando, para seguirmos apenas na questão do dístico, pode-se notar que no original a rima em mosaico problematiza inclusive a quantidade de pés, não sendo então um pentâmetro jâmbico em sentido estrito, no sétimo verso, o "in" precisa ser lido bem fraco e isso faz um verso de pé manco, coisa comum na lírica antiga, principalmente em sátira.

Eu falo /montein/ e não /montanhe/, por isso, para mim não rima com "ganhe". Já "attain" eu falo /atein/, por isso rima muito fácil com Montaigne.

"may attain" dá um sentido ativo que torna o "ganhe" bastante passivo.

Curioso como Byron não diz que a existência é "fugaz", mesmo estando com trinta e cinco anos e indo disposto a lutar pela Grécia e gastar todo seu dinheiro e ainda conseguir mais dinheiro para a causa, e tratou a guerra realmente como um herói. Já Augusto acha a vida "fugaz", como diz na Introdução do seu livro, "aos meus 78 anos" (2009, p. 14).

Aí vai outra coisa que a todos passou batida: todos disseram que Augusto dá a "afirmação do ceticismo pirrônico" (essa expressão filosófica dá coceira num pobre diletante de poesia) como certa em sua tradução, enquanto Byron colocava a coisa em dúvida. Pois bem, a questão é que em Byron há uma redundância, quando ele diz que "pouco sabemos dessa vida" e "duvido", pois dá no mesmo. Augusto de Campos notou isso, e por esse motivo não julgou necessário ser redundante, já que o sentido de um já se encontra incluso no sentido do outro. Nessa questão, ele foi mais conciso que o original, e isso é um mérito.

Porém enfim entretanto todavia chegamos no famigerado e capcioso último verso.

Lucas Zaparolli de Agustini disse...

CONTINUAÇÃO

Byron põe tudo como incerto, e reforça a incerteza inserindo uma dúvida.

Augusto põe tudo como incerto, e dentro dessa vaga incerteza geral insere uma afirmação que, num certo sentido, não é uma afirmação positiva, mas uma afirmação que reforça a dúvida, daí algo, sim, ter sido traduzido da ironia por Augusto, como diz Cicero.

Porém há algo realmente agramatical quando pensamos na mera tradução do Rafael de "que eu duvido se a própria dúvida duvida", que todos parecem concordar, e eu também entendo e concordo. Porém eu fico pensando o que tornaria essa frase gramatical, isto é, um sentido mais completo. Penso que, descontando o ritmo e a questão da rima, que obrigam certa movimentação na sintaxe usual, imagino poder me esforçar para enxergar também uma espécie de tradução como "Duvido que a própria dúvida seja duvidosa". Apenas para tentar, não creio que seja a mais correta e nem creio que haja algo mais correto ou menos correto nessas questões artísticas e literárias.

Onde chegaríamos? que Byron, em meio a incerteza, duvida que a dúvida duvide de si mesma. Isto é algo bonito. A imagem da vasta incerteza da humanidade, o mar de incertezas, e no meio desse mar de incertezas, a dúvida, soberana de todos os mortais, apenas ela tem certeza da existência de si mesma. É a sobreposição da poesia à filosofia, por isso Byron não fez a prosa de um "T Shandy" nem os "Ensaios de Montaigne", porque era poeta.

Enfim, no original, chegaríamos à ideia de que a dúvida não tem dúvidas da sua existência. Ou seja, até a dúvida tem uma certeza.

Na tradução de Campos, em meio à incerteza geral, ele afirma que a "dúvida da dúvida duvida", isso é, que a dúvida não tem certeza da sua própria existência, que é o que Rafael e o Anônimo disseram, respectivamente, que na tradução há uma corroboração do ceticismo e nada mais, e que ambos os textos apontam para caminhos distintos.

A verdade verdadeira não cabe a nós.

Quarenta por cento traduzido pode ser encontrado on line em minha dissertação, no site da biblioteca da usp. Até mais!

Lucas Zaparolli de Agustini