18.2.10

César Vallejo: Heces




Borra


Esta tarde chove como nunca; e não
tenho ganas de viver, coração.

Esta tarde é doce. Por que não há de ser?
Veste graça e pena; veste de mulher.

Esta tarde em Lima chove. E lembro
as cavernas cruéis de minha ingratidão:
meu bloco de gelo sobre sua amapola,
mais forte que seu “Não sejas assim!”

Minhas violentas flores negras; e a bárbara
e enorme pedrada; e o trecho glacial.
E porá o silêncio de sua dignidade
com óleos ardentes o ponto final.

Por isso esta tarde, como nunca, vou
com este mocho, com este coração.

E outras passam; e vendo-me tão triste,
tomam um pouquinho de ti
na abrupta ruga de minha profunda dor.

Esta tarde chove, chove muito. E não
tenho ganas de viver, coração!



Heces


Esta tarde llueve, como nunca; y no
tengo ganas de vivir, corazón.

Esta tarde es dulce. Por qué no ha de ser?
Viste gracia y pena; viste de mujer.

Esta tarde en Lima llueve. Y yo recuerdo
las cavernas crueles de mi ingratitud;
mi bloque de hielo sobre su amapola,
más fuerte que su "No seas así!"

Mis violentas flores negras; y la bárbara
y enorme pedrada; y el trecho glacial.
Y pondrá el silencio de su dignidad
con óleos quemantes el punto final.

Por eso esta tarde, como nunca, voy
con este búho, con este corazón.

Y otras pasan; y viéndome tan triste,
toman un poquito de ti
en la abrupta arruga de mi hondo dolor.

Esta tarde llueve, llueve mucho. ¡Y no
tengo ganas de vivir, corazón!




VALLEJO, César. Obra poética. Edición crítica. Américo Ferrari, coordinador. Madrid; París; México; Buenos Aires; São Paulo; Rio de Janeiro; Lima: ALLCA XX, 1996.

13 comentários:

fred girauta disse...

Cícero, que delícia!!!
Vallejo é um de meus poetas favoritos. Acho incrível o desconhecimento de sua poesia aqui no Brasil. É aquela velha história de dar as costas aos nossos vizinhos hispânicos.
Há tempos venho traduzindo seu livro mais radical: Trilce.
Que eu saiba, contamos apenas com uma tradução completa desse livro, feita por Thiaqo de Mello, da qual, confesso, não gosto nem um pouco. Deixo aqui o original e minha tradução do poema XLV de Trilce:

Me desvinculo del mar
cuando vienen las aguas a mí.

Salgamos siempre. Saboreemos
la canción estupenda, la canción dicha
por los labios inferiores del deseo.
Oh prodigiosa doncellez.
Pasa la brisa sin sal.

A lo lejos husmeo los tuétanos
oyendo el tanteo profundo, a la caza de teclas de resaca.

Y si así diéramos las narices
en el absurdo,
nos cubriremos con el oro de no tener nada,
y empollaremos el ala aún no nacida de la noche, hermana
de esta ala huérfana del día,
que a fuerza de ser una ya no es ala.
............................

Me desvinculo do mar
quando vêm as águas a mim

Saiamos sempre. Saboreemos
a canção estupenda, a canção dita
pelos lábios inferiores do desejo.
Oh! singelo prodígio
Passa a brisa sem sal.

Ao longe farejo tutanos
ouvindo o tateio profundo,
à caça de teclas de ressaca.

E se assim dermos de cara
com o absurdo,
nos cubriremos com o ouro de não ter nada,
e cortaremos a asa desnascida
da noite, irmã
desta asa órfã do dia
que já não exala a força de ser asa.

fred girauta disse...

Cícero,
no 5º verso: "y yo recuerdo..." está traduzido para "e não lembro..."

forte abraço!

Antonio Cicero disse...

Fred,

uma beleza a sua seleção e a tradução. Parabéns!

Abraço

Antonio Cicero disse...

Fred, obrigado por avisar. Foi um cochilo.

Abraço

Eleonora Marino Duarte disse...

observador


que maravilha! e ainda ganhamos de "brinde" a tradução do girauta!

recebi um e-mail anunciando que você e outros poetas estarão na livraria da travessa, ouvidor, dia 25/02/10 as 17.30. irei!


grande abraço.

ADRIANO NUNES disse...

Cicero,


Que poema belíssimo, intenso/tenso! Ganhei o dia!


Muito grato!

Abração,
Adriano Nunes.

ADRIANO NUNES disse...

Cicero,


Um novo poema:


"Do último momento" - Para os meus irmãos.




Dói o meu coração nessa hora em que nada posso.
Todos os pensamentos tendem a sentir que são meus.
Todas as dúvidas vingam minhas e são não sei quê.
Tudo em mim são fragmentos de um sonho alheio.

Que barco encalhado no cais sou eu?

Tenho a sensação insólita de não ter valor algum.
Teço qualquer intervalo entre o pranto e a alegria
Só para esquecer que sofro a morte antes
Da tomada da alma...

Desfaço-me como se fosse um poema
Que acabo de rasgar.
Meu coração se desdobra e soçobra.

(Vibra a tez poluída da manhã:

Carros, fábricas, sarjetas, ruídos,
Fungos, lixos, nexos, ratos... Outro preço
Pago

Pelo moço
Dos olhos sem vida.)

O tempo fecunda todo o universo.
É o momento!
Sim, é o momento!
Tudo tenta resgatar-me de mim.



Grande abraço,
Adriano Nunes

João Renato disse...

Caro Cícero,
O poema é triste.
E considerando que em Lima chove no máximo 10 vezes por ano (e é um acontecimento), fica mais triste ainda.
Abraço,
JR.

ADRIANO NUNES disse...

Cicero,


Outro poema:


"Mais que ornamento" - Para Antônio Francisco Lisboa, "Aleijadinho"


Pensar, criar,
Pôr vital ar
Nas próprias mãos.
Pedras que são?

Pra nossa glória,
Barroca história,
Contemplação.
Pedra-sabão?

Mais que ornamento
Geral, no centro
Do movimento:
Rococó. Dentro

Da vida, a mina
Sagrada, estátua
Humana, atua.
Matéria fina?

Superação
Da superfície
Do ser, artífice
Do coração.



Grande abraço,
Adriano Nunes.

Janaina Amado disse...

Como gosto de Cesar Vallejo, que bom relê-lo aqui.

Felipe disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Robson Ribeiro disse...

Muito bom, Cícero.

Grande Abraço!

paulinho (paulo sabino) disse...

lindo lindo lindo, cicero!... que pungente!...

essas dores assim, assentadas, doces, parecem-me ainda mais doridas. fica-me a impressão de que tais sofrimentos são tamanhos, são tão grandes, que chegam a gerar um tipo de resignação, um tipo de doçura merencória.

sei lá, pode ser maluquice minha.

na verdade, hoje estou avoado, não estou muito bom para interpretações (rs).

sabe como é, hoje, para mim, apesar do sol sobre a cidade, chove como nunca. mas vai passar; essa chuva, como as outras, há de passar.

beijão, moço bonito!