28.11.10

O construtivismo brasileiro



O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, no sábado, 27 de novembro.




O construtivismo brasileiro

HÁ POUCOS dias li, não me lembro mais onde, que na verdade De Gaulle (1890-1970) jamais declarou que o Brasil não era um país sério. Por outro lado, parece confirmado que seu compatriota Lévi-Strauss (1908-2009) chegou mesmo a dizer que "o Brasil é um país surrealista". Frequentemente ouço brasileiros afirmarem o mesmo que o antropólogo francês. Talvez tenham razão; mas quiçá seja exatamente por isso que, em comparação com o que ocorreu em Portugal, na Espanha ou na França, por exemplo, o surrealismo tenha vingado relativamente pouco nas artes brasileiras.

É que, como observa o poeta alemão Friedrich Hölderlin (1770-1843), nada aprendemos com maior dificuldade do que a usar livremente o que nos é natural. Afinal, não é a arte precisamente o oposto da natureza, como o artificial, do natural?

Tendo isso em mente, lembremo-nos também de que certo clichê bem representado, por exemplo, em filmes de Hollywood de algumas décadas atrás, faz do homem tropical um mero escravo da natureza circundante, dos vícios ou das paixões que ela lhe impõe, reduzindo-o à indolência e à passividade. Se Hölderlin tem razão, não será exatamente por isso – CONTRA tal pretenso destino – que Hélio Oiticica (1937-1980), por exemplo, dizia sentir no âmago da alma brasileira uma "vontade construtiva geral"?

Se eu estiver certo, o sentido mais profundo do uso da palavra "tropicália" feito por Oiticica e, em seguida, pelo movimento musical liderado por Caetano Veloso e Gilberto Gil terá sido o de promover a reversão e/ou ironizar tal concepção estereotipada dos trópicos. De todo modo, é claro que o construtivismo brasileiro não poderia deixar de se opor tanto à submissão à natureza quanto ao surrealismo.

Com efeito, a arte brasileira e moderna canônica, em particular a partir da segunda metade do século 20 – desde a epopeia glauberiana do cinema novo à decantação joão-gilbertiana do samba e da bossa nova; desde o plano piloto dos arquitetos da visão e loucura de Brasília ao plano piloto dos poetas concretistas dos campos e espaços de São Paulo; desde a psicologia da composição de João Cabral aos relevos espaciais de Oiticica; desde os bichos geométricos de Lygia Clark ao filme "O Cinema Falado" (1986), de Caetano Veloso etc. –, tudo parece confirmar a "vontade construtiva geral".

O artista brasileiro moderno tende a desconfiar do dado imediato, isto é, do lugar da natureza, da cultura, da história em que os outros querem situá-lo no mundo. Entende-se: o dado, aquilo que é constituído pelo passado natural e cultural, é no Brasil tomado principalmente como o tempo do subdesenvolvimento, da dependência cultural, política e econômica, e da escravatura. É da reação contra essa situação que surge a tendência construtiva de quase toda a nossa melhor arte. Nesse processo, não é o Brasil do passado que determina o Brasil moderno. Ao contrário: é o Brasil moderno que reinventa o Brasil do passado. Também nesse sentido tinha razão o crítico Mário Pedrosa (1900-1981), ligado a artistas de vanguarda como Ferreira Gullar, Lygia Clark e Hélio Oiticica, quando sentenciou que "o Brasil é um país condenado ao moderno".

Para o artista brasileiro, pensar sobre o Brasil – pensar o Brasil – não pode deixar de ser reinventá-lo. E creio que grande parte dos artistas modernos, os vários modernismos desde 22, o concretismo, o neoconcretismo, a bossa nova, o tropicalismo e os artistas contemporâneos sempre se encontraram nessa mesma situação ante a tarefa da inventio Brasilis: da descoberta-invenção do Brasil.

8 comentários:

ADRIANO NUNES disse...

Amado Cicero,

Estou muito encantado com o seu artigo e concordo contigo. Amo o Tropicalismo, essa coisa maravilhosa que Caetano e Gil lançaram ao mundo contra todo o pessimismo da música. Amo Hélio e todo parangolé e todo espaço e toda forma de amá-lo mais que artista. Amo os Campos e o Concretismo, de todo coração.
Esse seu artigo lança uma luz sobre como esses caras moldaram/mudaram a Arte/Poesia no Brasil. E como foram/são importantes.

Mas senti falta de Waly Salomão. Ele também devia ser citado.


Abração,
Adriano Nunes.

Roberto Bozzetti disse...

Cícero, não resisto a tentar meter minha colher nessa reflexão tão bem sacada por você (mais esta!):
- não querendo recriminar como uma suposta omissão sua, mas Oswald de Andrade não teria lugar fundamental, até como fundador, nesse "mainstream" construtivista?
- seu sempre lembrado par oposto e complementar na aventura modernista, Mário de Andrade, não teria se dilacerado justo porque vislumbrou isso em seu grande Macunaíma, mas não teria sabido equacionar os dados em função de seus fundamentos etnico-raciais e católicos?
- Paulinho da Viola não seria para você, como é para mim, o nome chave nesse construtivismo na história do samba? Paulinho nos ensinou - junto com Caetano e João Gilberto - a ouvir o samba que vem antes dele e lhe é coetâneo.
Grande abraço, mais uma vez obrigado.

Nobile José disse...

passou da hora de nossos políticos pensarem o brasil com essa visão de vanguarda, para que um dia consigam "reunir a zona norte à zona sul" sem miras telescópicas.

Antonio Cicero disse...

Roberto,

obrigado pela complementação.

Abraço

Climacus disse...

queria pegar uma carona na ideia de Bozzetti, nalgum ensaio que agora não sei o título, Antonio Candido, essa maravilha de inlectual de quase cem anos, afirma que a sua geração não assumiu a necessidade de fazer a crítica à geração anterior, que seria a de Mario de Andrade, Oswald e Viniciu de Moraes, uma vez que foi ela que tornou possível a geração Clima. Leio essa ideia de inúmeras maneiras, uma delas é que, especialmente Mario de Andrade, era um intelectual muito generoso com seus "sobrinhos". Agora lendo o elogio de Bozzetti a Paulinho da Viola, acho que ele foi o Mario de Andrade do samba.

Roberto Bozzetti disse...

Climacus,
não sei se entendi bem a analogia entre Mário e Paulinho, feita por você a partir do que eu disse - até porque não consegui situar o ensaio de Candido a que você se refere. Mas correndo o risco de minha má interpretação, não penso que Paulinho tenha desempenhado papel semelhante ao de Mário não, até porque em Paulinho nada é exatamente programático, na dimensão ambiciosa que essa palavra tinha na atuação e na obra de Mário. O que me parece ter havido em Paulinho, daí eu ter levantado a hipótese de seu papel nesse construtivismo, é que ele "descobre-inventa" uma tradição no samba que nos ensina a ouvi-lo. Em João Gilberto temos isso através de uma depuração de procedimentos tradicionais em nome de concepções mais modernas de tratamento da matéria musical, em Caetano, o ensinamento de João reaparece com a incorporação seletiva do imaginário e da presença voz-e-corpo do show-bizz nacional em rádio e disco, e em Paulinho, quero crer, também sem ignorar a lição de João, uma outra via, que depura os procedimentos tradiconais sem descartá-los, tratando-os de dentro sobretudo a partir de sua instrumentalizção prática e teórica pela via do choro e da musicalidade dos subúrbios. Nesse sentido, Paulinho recusa entre outras coisas o lugar determinado para o samba na leitura tradiconal da cultura brasileira: a equação simplista Brasil-samba nunca surge em suas canções, é muito mais uma questão de uma subjetividade seletiva e eletiva dele, Paulinho. E seus "sobrinhos" muitas vezes são seus "tios" da Velha Guarda da Portela, Cartola, Zé Keti, Wilson Batista, Nelson Cavaquinho etc. Acho que é uma outra coisa, diferente da de Mário.Um abraço

Climacus disse...

Bacana Bozzetti, vou ouvir Paulinho então, e ler Mario de Andrade, abraço (vocês já viram a foto que João Gilberto tirou de Dona Gilda de Mello e Souza?, bonito também).

Oleg disse...

Bravo, Cícero! Sua visão é, como sempre, muito profunda. O Brasil não se compreende pela inteligência (assim como a Rússia, na expressão antológica de Tiútchev), mas, sim, pela intuição artística e, mais ainda, pela capacidade de ver um pouco além do que der na vista. Oleg Almeida.