29.4.11

Duda Machado: "Imitação das coisas"




Duda Machado

Imitação das coisas

Vamos, dedique-se por inteiro
às aparências, às coisas propriamente
ditas. Procure frequentá-las,
trazê-las para dentro de si mesmo,
incorporá-las dia a dia,
a cada instante,
por mais irrisório/absurdo que pareça.

Pode ser, no entanto, que você
não resista o tempo todo
e, de vez em quando, se afaste
da consistência das coisas
e se deixe levar
pelo hábito de transformá-las
em encantamento ou profundidade.

Não se perturbe. Ao persistir,
voltaremos mais uma vez a elas,
imperfeitos e concentrados
- como no amor -, decididos
a alcançá-las, embora adivinhando,
e já pouco importa, que ainda
não estamos preparados.



MACHADO, Duda. Margem de uma onda. São Paulo: Editora 34, 1997.

26.4.11

Antonio Carlos Secchin: "De chumbo eram somente dez soldados"




De chumbo eram somente dez soldados

De chumbo eram somente dez soldados,
plantados entre a Pérsia e o sono fundo,
e com certeza o espaço dessa mesa
era maior que o diâmetro do mundo.

Aconchego de montanhas matutinas
com degraus desenhados pelo vento;
mas na lisa planície da alegria
corre o rio feroz do esquecimento.

Meninos e manhãs, densas lembranças
que o tempo contamina até o osso,
fazendo da memória um balde cego

vazando no negrume de um poço.
Pouco a pouco vão sendo derrubados
as manhãs, os meninos e os soldados.


SECCHIN, Antonio Carlos. Todos os ventos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.

22.4.11

Arnaldo Antunes: "Pensamento"





Pensamento

Pensamento que vem de fora
e pensa que vem de dentro,
pensamento que expectora
o que no meu peito penso.
Pensamento a mil por hora,
tormento a todo momento.
Por que é que eu penso agora
sem o meu consentimento?
Se tudo que comemora
tem o seu impedimento,
se tudo aquilo que chora
cresce com o seu fermento;
pensamento, dê o fora,
saia do meu pensamento.
Pensamento, vá embora,
desapareça no vento.
E não jogarei sementes
em cima do seu cimento.




ANTUNES, Arnaldo. Tudos. São Paulo: Iluminuras, 2001.

Foreign Policy em espanhol

Um amigo chamou-me atenção para o fato de que a revista digital “Foreign Policy En Español" (http://www.fp-es.org/) de março elegeu-me um dos 25 “novos rostos no pensamento iberoamericano”.

Cito a revista:

“[…] Hemos querido buscar los nuevos rostros del pensamiento en España y América Latina; aquellos cuyas ideas deben servir para interpretar la realidad, reflexionar sobre la política, las relaciones internacionales, la ciencia o las artes y analizar las consecuencias de un futuro que ya se nos viene encima.

"Las personas que aquí aparecen han despuntado en sus respectivos campos entre los últimos cinco y diez años y cuentan ya, por lo general, con una cuota de influencia que va más allá de su especialización. Representan la figura del intelectual público, consciente de la necesidad de compartir sus reflexiones con la sociedad. Pero no todos han alcanzado todavía una notoriedad que trascienda las fronteras de sus propios países […]”.

A menção ao meu nome diz simplesmente:

“ANTONIO CÍCERO
Brasil, Filósofo
Por su aportación a la cultura y las letras y por su pensamiento crítico”.

20.4.11

Guillaume Apollinaire: "La carpe" / "A carpa": tradução de R. Magalhães Junior




A carpa

Carpas, viveis tão longa vida
Nesses viveiros de água fria!
Será que a morte vos olvida,
Ó peixes da melancolia.



La carpe

Dans vos viviers, dans vos étangs,
Carpes, que vous vivez longtemps !
Est-ce que la mort vous oublie,
Poissons de la mélancolie.




APOLLINAIRE, Guillaume. Alcools, suivi de Le bestiaire illustré par Raoul Dufy et de Vitam impedere amori. Paris: Gallimard, 1978.

APOLLINAIRE, Guillaume. "As carpas". Tradução de R. Magalhães Júnior. In: MAGALHÃES JÚNIOR, R. Antologia de poetas franceses. Rio de Janeiro: Gráfica Tupy, 1950.

17.4.11

Fernando Pessoa / Ricardo Reis: "Tão cedo passa tudo quanto passa"




Tão cedo passa tudo quanto passa!
Morre tão jovem ante os deuses quanto
Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada.




PESSOA, Fernando. "Odes de Ricardo Reis". Obra poética. Rio de Janeiro: Aguilar, 1986.

14.4.11

Exposição no Oi Futuro de Ipanema: Minos, de Antonio Cicero: Abertura em 16 de abril (sábado)



MINOS



Não ocultei o monstro: Jamais hei de ocultá-lo.

Jamais erguerei paredes para vedá-lo às vistas dos curiosos e maledicentes. Jamais hei de exilá-lo.

Ao contrário:

Plantei-o no trono do salão central do palácio que ergui para abrigá-lo, na capital do meu reino, no umbigo desta ilha que eu mesmo tornei eixo do mundo.

Que para ele convirjam todos os turistas, todas as rotas marinhas, todas as linhas aéreas, todos os cabos submarinos, todas as redes siderais.

Construí canais estradas viadutos ferrovias funiculares pontes túneis até o palácio;

depois, áditos pórticos limiares entradas umbrais aléias ânditos elevadores passagens escadas ombreiras travessas portas corredores servidões rampas porteiras vielas passadouros escadarias portões arcadas soleiras portelas caminhos galerias sendas portais veredas cancelas áditos pórticos limiares entradas umbrais aléias ânditos elevadores passagens escadas ombreiras travessas portas corredores servidões rampas porteiras vielas passadouros escadarias portões arcadas soleiras portelas caminhos galerias sendas portais veredas cancelas áditos pórticos limiares entradas umbrais aléias ânditos elevadores passagens escadas ombreiras travessas portas corredores servidões rampas porteiras vielas passadouros escadarias portões arcadas soleiras portelas caminhos galerias sendas portais veredas cancelas alamedas áditos pórticos limiares entradas umbrais aléias ânditos elevadores passagens escadas ombreiras travessas portas corredores servidões rampas porteiras vielas passadouros escadarias travessas portões arcadas soleiras portelas caminhos galerias sendas portais veredas cancelas áditos pórticos limiares entradas umbrais aléias degraus portinholas ruelas ânditos elevadores passagens escadas ombreiras travessas portas corredores servidões rampas porteiras vielas passadouros escadarias portões arcadas soleiras portelas caminhos galerias sendas portais veredas cancelas alamedas áditos

10.4.11

Eugénio de Andrade: "Green God"




Green God

Trazia consigo a graça
das fontes quando anoitece.
Era o corpo como um rio
em sereno desafio
com as margens quando desce.


Andava como quem passa
sem ter tempo de parar.
Ervas nasciam dos passos
cresciam troncos dos braços
quando os erguia no ar.


Sorria como quem dança.
E desfolhava ao dançar
o corpo, que lhe tremia
num ritmo que ele sabia
que os deuses devem usar.


E seguia o seu caminho,
porque era um deus que passava.
Alheio a tudo o que via,
enleado na melodia
duma flauta que tocava.


ANDRADE, Eugénio de. Poemas de Eugénio de Andrade. Seleção, estudo, notas de Arnaldo Saraiva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

8.4.11

Jean-Pierre Lemaire: "O sol da ilha de Poros": trad. de Júlio Castañon Guimarães




O sol da ilha de Poros

O quarto do sol
o quarto dos enamorados azuis
o quarto das flores
o quarto da noite dos tempos
Todos se comunicam
na memória da felicidade
que conserva suas cores puras
sem paredes entre as horas


Le soleil de Poros

La chambre du soleil
la chambre des amants bleus
la chambre des fleurs
la chambre de la nuit des temps
Toutes communiquent
dans la mémoire du bonheur
qui garde leurs couleurs pures
sans mur entre les heures


LEMAIRE, Jean-Pierre. Poemas. Tradução de Júlio Castañon Guimarães. São Paulo: Lumme Editor, 2010.

6.4.11

Fernanda Torres: "Os demônios"

O seguinte artigo de Fernanda Torres foi publicado na "Ilustrada", da Folha de São Paulo, no sábado passado.

Os demônios

NO CLÁSSICO romance de Fiodor Dostoiévski "Os Demônios", revolucionários radicais atuam clandestinamente, incitando a população a vaiar o poeta Stiepan Trofímovitch durante o sarau de uma pequena cidade do interior da Rússia. O objetivo do grupo é exterminar uma arte considerada burguesa.

Trofímovitch responde com veemência à agressão:

"Eu proclamo (...), proclamo que Shakespeare e Rafael estão acima da libertação dos camponeses, acima da nacionalidade, acima do socialismo, acima da nova geração, acima da química, acima de quase toda a humanidade, porque são o fruto, o verdadeiro fruto de toda a humanidade e, talvez, o fruto supremo, o único que pode existir! É a forma da beleza já atingida, e sem atingi-la eu talvez já não concordasse em viver..."

O caso de amor e ódio da arte com a sociedade provoca reações passionais. No Brasil, já fui testemunha de pelo menos um momento de ojeriza explícita que culminou com o fechamento sumário da Embrafilme.

Os mesmos ataques de agora, calcados na dependência do dinheiro público e na formação de panelas culturais, culminaram com a decisão do ex-presidente Fernando Collor de decretar o fim da estatal sem temer represálias.

O cinema demorou mais de dez anos para se reestruturar.

Antes da criação da Lei Sarney, em 1986, os subsídios culturais aconteciam por meio de patrocínio, dinheiro dito bom, de propaganda das empresas. Mas chegou-se à conclusão de que esse sistema era elitista e favorecia os artistas mais conhecidos.

O modelo foi enterrado e as leis de incentivo surgiram para democratizar a relação do empresariado com a cultura.

Durante os oito anos de FHC, a política do Planalto ampliou os subsídios e deixou que o mercado se autorregulasse. Quando Lula assumiu, o MinC decidiu exercer um controle mais incisivo.

As dúvidas em relação à necessidade dos artistas consagrados utilizarem tais benefícios vem ganhando força desde então.

O ex-ministro da Cultura Juca Ferreira já chamava a atenção para os dividendos que a associação de um artista de renome com marcas e produtos trazia para as empresas e defendia, em tais casos, a entrada de dinheiro bom na negociação.

Carmen Mello, produtora associada a mim e a minha mãe, tenta desde 2008 convencer as firmas envolvidas a empregarem, como antigamente, sua verba de propaganda nos espetáculos que produz. Mas, sem as leis de isenção, não há interesse.

Não se deve crucificar artistas e empresários. Ninguém deseja para si a pecha de onerar o povo para poder existir. Há mais de 20 anos, todo o mercado foi direcionado para agir segundo as normas vigentes. A volta do patrocínio precisaria ser motivada.

Maria Bethânia estreou seu espetáculo de poesia sem apoio de nenhum benefício fiscal. A bilheteria do teatro do Fashion Mall, no Rio de Janeiro, cobriu os custos e o público fiel foi suficiente para lotar a curta temporada sem maiores gastos com publicidade.

Bethânia produziu uma obra de delicadeza tão notável que incitou Hermano Vianna a levá-la para a internet, de graça e por toda a vida. Todas as empresas contatadas desejaram se aliar ao projeto, mas insistiram nas leis de incentivo.

Bethânia cobrou pela elaboração, feitura e doação "ad eternum" de seus direitos de imagem para veiculação gratuita, R$ 1.643 por vídeo. O Minc, que aprovou outros sites por valores até superiores, entendeu que era justo.

A manchete na primeira página afirmando que Bethânia receberia R$ 1,3 milhão para fazer um blog, apesar de verdadeira, sugere falcatrua e má-fé.

O site "O Brasil Precisa de Poesia" se transformou no bode expiatório da encruzilhada da política cultural brasileira. Aberrações graves poderiam ter servido de exemplo, mas queimar uma feiticeira da dimensão de Bethânia tem um valor insubstituível do ponto de vista do escândalo.

O Brasil subsidia infindáveis setores de sua produção, o papel que imprime este jornal inclusive.

Do total desse investimento, um por cento é destinado à cultura.

A economia criativa, propulsora de grandes negócios no mundo civilizado, está engessada no nosso país. A arte foi estatizada e se transformou, à vista do público, em um pária dependente do tesouro.

Talentos como o de Bethânia teriam um valor inestimável e seriam remunerados à altura se encontrássemos uma maneira de fazer a poesia e a educação participarem da economia da sétima potência mundial.

Algum carro, xampu ou refrigerante se interessaria em associar sua imagem a Guimarães Rosa e a Fernando Pessoa?

4.4.11

Fernando Assis Pacheco: "Louvor do Bairro dos Olivais"




Louvor do Bairro dos Olivais

Não tive nunca nada a ver com as
guitarras estudantes; eu vivia
num lento bairro da periferia
onde a chuva apagava os passos das

pessoas de regresso a suas casas
fazia compras na mercearia
e algum livro mais forte que então lia
já era para mim como um par d'asas

amigos vinham ver-me que eu servia
de ponche ou Madeira malvasia
para soltar as línguas livremente

um que bramava um outro que dormia
eu abria a janela e só dizia
ao menos estas ruas têm gente



PACHECO, Fernando Assis. A Musa irregular. Lisboa: ASA, 1996.

2.4.11

Charles Baudelaire: "Les chats" / "Os gatos": tradução de Ivan Junqueira




Os gatos

Os amantes febris e os sábios solitários
Amam de modo igual, na idade da razão,
Os doces e orgulhosos gatos da mansão,
Que como eles têm frio e cismam sedentários.

Amigos da volúpia e devotos da ciência,
Buscam eles o horror da treva e dos mistérios;
Tomara-os Érebo por seus corcéis funéreos,
Se a submissão pudera opor-lhes à insolência.

Sonhando eles assumem a nobre atitude
Da esfinge que no além se funde à infinitude,
Como ao sabor de um sonho que jamais
                                        termina;

Os rins em mágicas fagulhas se distendem,
E partículas de ouro, como areia fina,
Suas graves pupilas vagamente acendem.



Les chats

Les amoureux fervents et les savants austères
Aiment également, dans leur mûre saison,
Les chats puissants et doux, orgueil de la
                                        maison,
Qui comme eux sont frileux et comme eux
                                        sédentaires.

Amis de la science et de la volupté
Ils cherchent le silence et l'horreur des
                                        ténèbres ;
L'Erèbe les eût pris pour ses coursiers funèbres,
S'ils pouvaient au servage incliner leur fierté.

Ils prennent en songeant les nobles attitudes
Des grands sphinx allongés au fond des
                                        solitudes,
Qui semblent s'endormir dans un rêve sans fin ;

Leurs reins féconds sont pleins d'étincelles
                                        magiques,
Et des parcelles d'or, ainsi qu'un sable fin,
Etoilent vaguement leurs prunelles mystiques.


BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Edição biligue. Tadução, introdução e notas de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

1.4.11

Inês Pedrosa: "Bethânia e as virgens deserdadas"




O seguinte artigo da importante escritora portuguesa Inês Pedrosa, diretora da Casa Fernando Pessoa, foi publicado ontem no jornal Estado de São Paulo:


Bethânia e as virgens deserdadas

Durante os breves dias que passei agora no Brasil, pasmei com a ferocidade da campanha contra um projeto de poesia de Maria Bethânia. O meu pasmo foi subindo de degrau em degrau a cada hora de cada um dos cinco dias e terminou num miradouro de indignação. Parece-me útil dar a ver aos brasileiros o panorama feio que os meus portugueses olhos divisaram – amo demasiado o Brasil para poder ficar fora dele mesmo quando ele me deixa fora de mim, mas temo que assim não aconteça com corações mais turísticos do que o meu.

O coro de virgens ofendidas com a verba que o Ministério da Cultura autoriza a captar para o projeto de Bethânia ( um milhão e trezentos mil reais) é patético por diversas razões, a primeira das quais é a suposição cândida de que, a não ser investido na divulgação de poesia de língua portuguesa a que Bethânia se propõe, esse dinheiro seria canalizado para escolas, hospitais e o escambau. Verdade seja que a lista dos projetos aprovados pelo Ministério da Cultura inclui muita coisa que, vista de fora, me parece o escambau. Em Portugal, a Lei do Mecenato não funciona, porque o conceito de desenvolvimento através das artes ainda não conseguiu furar a massa cinzenta dos empresários lusitanos. Por isso, os apoios à cultura saem directamente do bolso dos contribuintes, o que os torna sempre polémicos e sujeitos à conspiração das invejas organizadas – a mais eficiente organização do país.

Eu tinha a ilusão de que o Brasil não era assim – via o Brasil virado para o futuro, incompatível com o ressentimento. Ainda quero ver, porque o Brasil onde eu moro e quero cada vez mais morar é povoado por artistas que se inspiram mutuamente, estudiosos ousados, enfim, gente que não perde tempo a envenenar-se e a envenenar os outros. Pobres puritanos da moral alheia: a grana que patrocinará Bethânia nunca serviria para pagar outras coisas. Porquê? Porque Bethânia não é uma coisa qualquer. O que ela faz tem repercussão. Possui um talento e uma voz únicos. Aguentem-se.

Porque será que só o projeto de Bethânia é sujeito ao escrutínio da maledicência? Porque Bethânia é uma estrela – de fato. Enche quantas vezes quiser as maiores salas de espetáculos de Portugal, da Europa e de várias partes do mundo. Porque o Ministério da Cultura do Brasil a subsidia? Não: porque tem um percurso internacionalmente reconhecido. Como cidadã da gloriosa pátria da língua portuguesa – a única pátria em que, tal como Fernando Pessoa, me reconheço – agradeço-lhe diariamente o seu trabalho de muitas décadas em prol da poesia e dos poetas desta língua, de Pessoa a Guimarães Rosa, de Vinicius de Moraes a José Régio, de Sophia de Mello Breyner Andresen a João Cabral de Melo Neto. Se me tornei, ainda adolescente, leitora de José Régio, a ela o devo. O meu fascínio por Pessoa começou com a voz dela. E foi dela que recebi o primeiro estímulo para a descoberta da sublime literatura brasileira. Não há muitos cantores populares por esse mundo que se dediquem, de um modo contínuo, a este trabalho pioneiro e pedagógico. Penso que a visível subida do nível cultural do Brasil nas últimas décadas deve muito a Maria Bethânia. E tenho a certeza que a literatura portuguesa tem uma dívida imensa para com ela – toda a minha geração foi tocada pelos seus poetas, mesmo ou sobretudo quando, aos vinte anos, ia ouvi-la apenas para encontrar consolo para a vertigem das paixões mal sucedidas.

A 8 de Março de 2010 fui ao Rio de Janeiro para, em nome da Casa Fernando Pessoa e em parceria com o Instituto Moreira Salles, galardoar Maria Bethânia e Cleonice Berardinelli com a Ordem do Desassossego, então instituída. Quisémos que a primeira atribuição dessa Ordem fosse uma homenagem ao Brasil e a essas duas heroínas da divulgação da obra de Fernando Pessoa. Pouco depois, Bethânia foi a Portugal fazer um show e contactou-me, dizendo que queria oferecer um recital de poesia de língua portuguesa na Casa Fernando Pessoa. E ofereceu – sim, gratuitamente, escandalizem-se, oh virgens! – um espetáculo belíssimo, concebido, encenado e realizado por ela, aliando interpretação e canto, com uma inteligentíssima seleção dos maiores poetas de Portugal e do Brasil. As paredes da Casa iam estourando, tal a multidão e o deslumbramento.

Nessa ocasião, Bethânia falou-me da sua vontade de levar pelo interior do Brasil e de Portugal um conjunto de espetáculos destes, exclusivamente dedicados à poesia. Que Bethânia ou alguém próximo dela ( porque Bethânia nem sequer é praticante da religião das redes virtuais) tenha acrescentado a esse projeto a circulação dos poemas ditos na internet, parece-me uma excelente e eficaz ideia. Sim, opulentos invejosos, já há muita poesia na net – mas não dita e encenada por Bethânia. A voz e o critério dela chegam mais longe, movem mais almas – é isso que não se lhe perdoa. Caetano já o disse, numa crónica coruscante, no “Globo”. Mas eu quero repeti-lo, porque não sou irmã dela – amo-a, sim, como comecei a amá-lo a ele, desde a mais tenra juventude e sem os conhecer de parte alguma nem saber onde ficava Santo Amaro da Purificação, de onde ambos vieram, sem patrocínios nem padrinhos, para acrescentar luz e força às nossas vidas. Amo-os porque as suas vozes e os seus dons criativos me fizeram e fazem acreditar que o mundo pode ser um lugar mais belo e mais sábio. O Brasil está a dar certo porque eles – e muitos outros como eles, e uma multidão com eles – assim o quiseram. E isso só não vê quem não quer – ou não é capaz – de ver.