29.1.12

Cioran: trecho de "Borges. Carta a Fernando Savater"




[...]
Nunca fui atraído por espíritos confinados numa única forma de cultura. Não se enraizar, não pertencer a nenhuma comunidade - esta foi e é minha divisa. Voltado para outros horizontes, sempre procurei saber o que se passava alhures. Aos vinte anos, os Bálcãs não podiam me oferecer mais nada. É o drama, e a vantagem também, de ter nascido num espaço "cultural" menor, qualquer que seja ele. O estrangeiro se tornara meu deus. Daí esta sede de peregrinar através das literaturas e das filosofias, de devorá-las com ardor doentio. O que acontece no Leste da Europa deve necessariamente acontecer nos países da América Latina e observei que seus representantes são infinitamente mais informados, mais "cultos" que os Ocidentais, incuravelmente provincianos. Nem na França ou na Inglaterra vi alguém que tivesse uma curiosidade comparável à de Borges, uma curiosidade exacerbada até a mania, até o vício, digo realmente vício porque, em matéria de arte e de reflexão, tudo o que não se transforma em entusiasmo um pouco perverso é superficial, logo irreal.
[...]




CIORAN. "Borges. Carta a Fernando Savater". In:_____. Exercícios de admiração. Tradução de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.

27.1.12

Gastão Cruz: "Pedro Hestnes"





Pedro Hestnes

Passou a alguns metros de onde eu
estava; não o via
há anos e nem sei
qual a última vez que com ele falara

Não o reconheci de imediato e bastou
essa dúvida para criar um hiato
na linha dos olhares de repente cruzados
dentro da tarde; receara

decerto não ter sido por mim reconhecido
enquanto que eu não fora já a tempo
de lhe mostrar que o vira e me lembrava
do seu rosto mesmo que um pouco menos

luminoso que outrora; e um remorso
absurdo me tomou por ter perdido
esse olhar hesitante
no desconcerto breve de uma tarde



CRUZ, Gastão. Observação do verão. Lisboa: Assírio & Alvim, 2011.

24.1.12

Declaração da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF)





Apoio integralmente a seguinte Declaração da ANPOF:




DECLARAÇÃO DA ANPOF


Prezados colegas:

Tramita no Congresso Nacional, em regime conclusivo, o projeto de lei nº 2533/11, elaborado pelo deputado Giovani Cherini(PDT/RS). Seu objetivo é regulamentar a profissão de filósofo no Brasil. Conforme a proposta do deputado Cherini, o desenvolvimento de projetos socioeconômicos regionais, setoriais ou globais deverão contar com a participação de filósofos devidamente registrados no Ministério do Trabalho. Estarão qualificados para o exercício da profissão todos aqueles que possuírem título de bacharel em filosofia, os diplomados “em cursos similares” no exterior, após terem seus diplomas revalidados, além de mestres e doutores não diplomados que exerçam a atividade há mais de cinco anos. O mencionado projeto de lei também assegura que a profissão de “filósofo” poderá ser exercida por membros titulares da Academia Brasileira de Filosofia e “aos por ela diplomados”. Para conferir a íntegra do projeto de lei, acesse:
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=523870

Como representante da comunidade de pós-graduação dos cursos de filosofia no Brasil, a ANPOF vem manifestar seu repúdio a tal projeto.

Cursos de filosofia formam professores de filosofia, que podem ou não ser filósofos. Assim também, cursos de literatura formam professores de literaratura, que podem ou não ser literatos. Finalmente, há filósofos e literatos sem titulação acadêmica. É tão absurdo exigir diplomação específica para alguém ser filósofo quanto seria exigir diplomação específica para alguém ser escritor. A filosofia não é e nem deve tornar-se competência exclusiva de um segmento qualquer, seja ele de natureza estamental, profissional ou ideológico.

Acima de tudo, causa-nos estranheza a prerrogativa que o projeto pretende dar à Academia Brasileira de Filosofia, que qualifica como filósofos João Avelange e Carlos Alberto Torres, capitão da seleção de futebol de 1970. Trata-se de uma associação absolutamente inexpressiva no que concerne aos estudos, projetos de pesquisa e ensino da filosofia em nível universitário. A despeito disso, o referido projeto quer transformar essa entidade na representante da filosofia e da “língua filosófica” nacionais” (artigo 7).

Por essas razões, endossamos o abaixo‑assinado que circula na Internet contra o mencionado projeto, que pode ser acessado a partir do link que inserimos abaixo.

http://www.change.org/petitions/abaixo-assinado-contra-a-regulamentao-de-filsofo-como-profisso-contra-a-regulamentao-de-filsofo-como-profisso
Cordialmente,

Vinicius de Figueiredo (Presidente da Diretoria da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia – ANPOF)

23.1.12

Juan Manuel Roca: "Canción del que fabrica los espejos" / "Canção do que fabrica os espelhos": trad. Adriano Nunes




Agradeço ao meu amigo Adriano Nunes (vejam seu blog, quefaçocomoquenãofaço, em http://astripasdoverso.blogspot.com/) por me ter enviado o seguinte poema, traduzido por ele, de Juan Manuel Roca:



Canción del que fabrica los espejos

Fabrico espejos:
Al horror agrego más horror,
Más belleza a la belleza.
Llevo por la calle
La luna de azogue:
El cielo se refleja en el espejo
Y los tejados bailan
Como un cuadro de Chagall.
Cuando el espejo entre en otra casa
Borrará los rostros conocidos,
Pues los espejos no narran su pasado,
No delatan antiguos moradores.
Algunos construyen cárceles,
Barrotes para jaulas.
Yo fabrico espejos:
Al horror agrego más horror,
Más belleza a la belleza.


Canção do que fabrica os espelhos

Fabrico espelhos:
Ao horror agrego mais horror,
Muita beleza à beleza.
Levo pela rua
A lua de azougue:
O cosmo se reflete em um espelho
E os telhados bailam
Como um quadro de Chagall.
Quando o espelho adentre noutra casa
Borrará os rostos conhecidos,
Pois os espelhos não narram seu passado,
Não delatam antigos moradores.
Alguns constroem cárceres,
Barrotes para jaulas.
Eu fabrico espelhos:
Ao horror agrego mais horror,
Toda beleza à beleza.

21.1.12

Heráclito de Êfeso: fragmento 30 (Diels/Kranz)



Para ler, dê um clique sobre a página branca.


19.1.12

Severo Sarduy: "Rothko" / "Rothko": trad. Haroldo de Campos




Rothko

                         A Andrés Sánchez Robayna

No los colores, ni la forma pura.
Memoria de la tinta. Sedimento
que decanta la luz de su pigmento,
más allá de la tela y su armadura.

Las líneas no, ni sombra ni textura,
ni la breve ilusión del movimiento;
nada más que el silencio: el sentimiento
de estar en su presencia. La Pintura

en franjas paralelas cuya bruma
cruza la tela intacta, aunque teñida
de cinabrio, de vino que se esfuma;

púrpura, bermellón, anaranjada…
El rojo de la sangre derramada
selló su exploración. También su vida.


Rothko

                        A Andrés Sánchez Robayna

As cores, não, tampouco a forma pura.
Rememorar da tinta. Sedimento
que se decanta, à luz, de seu pigmento,
além, além da tela e sua armadura.

Sombra alguma, nem linhas, nem textura,
nem a quase-ilusão do movimento;
silêncio, nada mais: o sentimento
de já estar em presença: da Pintura,

suas franjas paralelas, cuja bruma
cruza o intacto da tela, colorida
embora de zarcão, vinho que esfuma;

cor púrpura, cinábrio, tez laranja...
O vermelho do sangue que se esbanja
selou sua exploração. Selou sua vida.



CAMPOS, Haroldo de. "Três (re)inscrições para Severo Sarduy". In:_____. O segundo arco-íris branco. São Paulo: Iluminuras, 2010

17.1.12

Friedrich Nietzsche: "So sprach ein Weib..." / "Assim me disse uma mulher...": trad. Geir Campos




Assim me disse uma mulher, tímida,
À luz do amanhecer:
"Já és tão feliz na sobriedade...
Bêbedo, como não hás de ser?"



So sprach ein Weib voll schüchternheit
Zu mir im Morgenschein:
"Bist schon du selig vor Nüchternheit,
Wie selig wirst du -- trunken sein?"



NIETZSCHE, Friedrich. "So sprach ein Weib..." Trad. de Geir Campos. In: CAMPOS, Geir (org.). O livro de ouro da poesia alemã. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d.

15.1.12

José Ortega y Gasset: de "El deber de la nueva generación arentina"




O intelecto não tem melhor excitante nem melhor ginástica nem melhor nutrição do que uma peculiar e luxuosa volúpia pela verdade. O jovem que não sinta esse prazer quase erótico de abrir a mão e trêmulo apalpar as formas deliciosas de uma ideia em que a realidade imprimiu seu seio e sua face pode estar seguro de que aos trinta anos já terá perdido toda inteligência.


ORTEGA Y GASSET, José. "El deber de la nueva generación argentina". In:_____. Meditación del pueblo jóven. Buenos Aires: Emecé, 1958.

13.1.12

Adriano Espínola: "Mar e claridade"





Mar e claridade.
Gaivotas traçam as rotas
do sol na cidade.
A manhã salta no cais.
Barcos partem ancestrais.





ESPÍNOLA. Adriano. Trapézio. Haicais/Tankas. Ilustrações: Geraldo Jesuíno. Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2011.

11.1.12

Ferreira Gullar: "Off price"




Off price

Que a sorte me livre do mercado
e que me deixe
continuar fazendo (sem o saber)
                 fora de esquema
                 meu poema
inesperado


                e que eu possa
                cada vez mais desaprender
                de pensar o pensado
e assim poder
reinventar o certo pelo errado


GULLAR, Ferreira. Em alguma parte alguma. Lisboa: Babel, 2010.

9.1.12

Sobre a discussão entre Popper e Wittgenstein





Em artigo publicado hoje no suplemento “tec”, da Folha de São Paulo, Luli Radfahrer se refere a um episódio famoso da história intelectual do século XX. Trata-se do desentendimento entre Karl Popper e Ludwig Wittgenstein. Segundo Radfahrer,

“Wittgenstein argumentava que as questões filosóficas não passavam de problemas linguísticos. Popper discordava. Para estimular o debate, a Universidade de Cambridge convidou Popper para expor suas ideias, com Wittgenstein e outros figurões no auditório.
“A expectativa era grande, mas não para o que ocorreu. Mal começado o evento, Wittgenstein pegou o espeto da lareira e, armado com ele, saiu gritando que Popper estava errado. A situação só não terminou em tragédia porque alguém da plateia gritou para que ele sossegasse. A lenda diz que a bronca veio de Bertrand Russell, pouco importa.”

Eis a versão que Popper conta dessa história:


No início do ano letivo de 1946-47,o secretário do Clube de Ciências Morais, de Cambridge, convidou-me a fazer uma exposição acerca de alguma ‘charada filosófica’. Estava claro que se tratava de uma formulação devida a Wittgenstein, por trás da qual estava sua tese filosófica de que, em Filosofia, não existem problemas genuínos, mas tão-somente charadas lingüísticas. Uma vez que essa tese estava entre minhas aversões prediletas, decidi falar a propósito de ‘Existem problemas filosóficos?’. Comecei meu trabalho (lido na sala de R.B. Braithawaite, no “King’s College”, no dia 26 de outubro de 1946) exprimindo surpresa por ter sido convidado pelo secretário a falar ‘a propósito de alguma charada filosófica’; e assinalei que, negando implicitamente a existência de problemas filosóficos, quem fizera o convite tomara posição, talvez inadvertidamente, num debate gerado por um genuíno problema filosófico.

Desnecessário dizer que, com isso, eu pretendia apenas fazer uma introdução provocadora e leve do meu tema. Mas, a essa altura, Wittgenstein pulou da cadeira e disse, alto e ,ao que me pareceu, em tom zangado: ‘O Secretário fez exatamente o que lhe foi dito que fizesse. Observou instruções minhas’. Não dei atenção e prossegui; mas, como ficou claro, alguns dos admiradores de Wittgenstein, ali presentes, deram atenção às suas palavras e, em conseqüência, tomaram minha observação, que pretendia ser uma brincadeira, como uma queixa séria contra o Secretário. E assim parece ter entendido o pobre Secretário, com se vê da ata em que ele refere o incidente, acrescentando em nota de pé de página: “Essa foi a forma de convite usada pelo Clube.”

Fui adiante, apesar de tudo, para dizer que, se eu não acreditasse na existência de problemas filosóficos genuínos, eu não seria por certo filósofo; e que o fato de muitas, talvez todas as pessoas acolherem irrefletidamente soluções insustentáveis para muitos, talvez para todos os problemas filosóficos, propiciava a única justificativa para ser-se filósofo. Wittgenstein ergueu-se de novo, interrompeu-me, e falou longamente acerca de charadas e da inexistência de problemas filosóficos. Em momento que me pareceu adequado, interrompi-o, apresentando uma lista de problemas filosóficos, por mim preparada, onde figuravam questões como “Conhecemos as coisas através de nossos sentidos?”, “Há conhecimento por indução?”
Wittgenstein rejeitou essas indicações, dizendo tratar-se de questões lógicas e não filosóficas. Mencionei então o problema de saber se existem infinitos potenciais ou talvez mesmo atuais, o que ele considerou uma questão de Matemática. (Isso consta da ata.) Aludi, em seguida, aos problemas morais e ao problema da validade das regras morais. A essa altura, Wittgenstein, que estava sentado junto à lareira e brandia nervosamente o atiçador de fogo, que por vezes usava como batuta de maestro, para sublinhar suas afirmações, lançou-me um desafio: “Dê-me um exemplo de regra moral”. Respondi: “Não ameaçar conferencistas visitantes com atiçadores de fogo”. Wittgenstein, com raiva, atirou longe o atiçador e precipitou-se para fora da sala, batendo a porta atrás de si”.


POPPER, Karl. Autobiografia intelectual. São Paulo: Cultrix, 1977.

Dante Milano: "Sentir aceso dentro da cabeça"




Sentir aceso dentro da cabeça

Sentir aceso dentro da cabeça
Um pensamento quase que divino,
Como raio de luz frágil e fino
Que num cárcere escuro resplandeça.
Seguir-lhe o rastro branco em noite espessa,
Ter de uma inútil glória o vão destino,
Ser de si mesmo vítima e assassino,
Tentar o máximo, ainda que enlouqueça.
Provar palavras de sabor impuro
Que a boca morde e cospe porque é suja
A água que bebe e o pão que come é duro,
E deixar sobre a página da vida
Um verso — essa terrível garatuja
Que parece um bilhete de suicida.



MILANO, Dante. "Sonetos e fragmentos". In: MARTAGÃO, Sérgio (org.)._____. Obra reunida. Apresentação de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2004.

7.1.12

Platão: trecho do discurso de Fedro no "Simpósio"




Embora de fato os deuses honrem acima de tudo a virtude que vem do amor, eles admiram, apreciam e recompensam a dedicação do amado ao amante ainda mais do que a do amante ao amado: pois é mais divino o amante, já que está possuído pelo deus, do que o amado.




PLATÃO. Symposium. In: BURNET, John (org.). Platonis opera, vol.II. Oxford, Clarendon Press, 1901, p.180a.

5.1.12

Gastão Cruz: "Ramo"




Talvez eu não consiga quanto amo
ou amei teu ser dizer, talvez
como num mar que tu não vês
o meu corpo submerso seja o ramo
final que estendo já não sei a quem




CRUZ, Gastão. A moeda do tempo e outros poemas. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2009.

3.1.12

Roland Barthes: de "R. Barthes par lui-même"




Por gostar de encontrar e de escrever inícios, ele tende a multiplicar esse prazer: eis por que escreve fragmentos: tantos fragmentos, tantos inícios, tantos prazeres (mas não gosta de fins: o risco de uma cláusula retórica é grande demais: temor de não saber resistir à última palavra, à última réplica).



BARTHES, Roland. R. Barthes par lui-même. Paris: Ed. du Seuil, 1975.

2.1.12

Sigmund Freud: de "O futuro de uma ilusão"





Os filósofos esticam o significado de palavras até que essas mal conservam algo do seu sentido original; chamam alguma abstração borrada que criaram de “Deus” e posam para o mundo inteiro como deístas, crentes que conheceram um conceito mais puro de Deus, embora seu Deus seja apenas uma sombra sem substância, e não mais a personalidade poderosa da doutrina religiosa.



FREUD, Sigmund. Die Zukunft einer Illusion. Leipzig: Internationaler Psychoanalytischer Verlag, 1927.