29.4.13

Celso Lafer: "Helio Jaguaribe, aos 90"







A seguir publico o excelente artigo de Celso Lafer sobre um dos mais admiráveis intelectuais brasileiros, Helio Jaguaribe. Esse artigo foi originalmente publicado no jornal O Estado de São Paulo, em 21 de abril de 2013.



HELIO JAGUARIBE, AOS 90


Helio Jaguaribe completa 90 anos neste mês. Integra uma admirável geração que começou a produzir na década de 1950 com base no que escrevera a anterior, para explicar o Brasil, de distintas perspectivas (por exemplo, as de Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Caio Prado Jr.). A partir desse patamar de conhecimento procurou, à sua maneira, as chaves para o entendimento do Brasil, da sua formação e do seu destino político, econômico e cultural. Dessa geração, que inclui Celso Furtado, Roberto Campos, Raymundo Faoro, Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes, Antonio Candido, Helio é um dos grandes expoentes.

Essa geração exerceu, no espaço da palavra e da ação, a função do intelectual público e, nesse âmbito, Helio é representativo de um paradigma de excelência. Empenhou-se, tendo em vista a relação entre intelectuais e política no mundo contemporâneo, tanto em propor rumos quanto em elaborar conhecimentos aptos a converter os rumos propostos em políticas públicas.

"Compreender o nosso tempo na perspectiva do Brasil" e "compreender o Brasil na perspectiva do nosso tempo" foi o lema que Helio formulou em 1953 para a revista Cadernos do Nosso Tempo, que fundou e dirigiu. Esse lema, na dialética de sua complementaridade, caracteriza as linhas da trajetória do seu pensamento e da sua ação. Num fecundo diálogo entre o nacional e o universal explora e clarifica o porquê e o como promover e incrementar a racionalidade pública para ampliar democraticamente, com liberdade e igualdade, o poder de controle da sociedade brasileira sobre o seu destino. Daí, no correr das décadas, não só as suas intervenções, as instituições que criou (como o Iseb), a sua participação na vida pública e os seus incontáveis estudos relacionados com o desenvolvimento brasileiro.

O impacto de Helio na opinião pública como expositor, analista da conjuntura, articulista tem muito que ver com o vigor e o entusiasmo da sua orteguiana razão vital, com a fulgurante inteligência do seu poder de síntese e a originalidade contagiante de suas formulações. Em poucas palavras, com o seu estilo que, como todo estilo, é a expressão de uma visão de mundo. Observa Helio que, "as ideias de um autor sobre o mundo coincidem com o mundo das ideias desse autor".

Helio, no mundo das ideias, é um pensador que, por aproximações sucessivas, com empenho de scholar, sistematizou e desenvolveu suas inquietações e percepções numa densa obra. Esta, a de maior escopo de sua geração, abrange, num arco de coerência, muitos campos do conhecimento. Por questão de espaço vou circunscrever minhas observações à ciência política e às relações internacionais.

Helio ampliou os horizontes e elevou o patamar da ciência política com Desenvolvimento Econômico e Desenvolvimento Político (1962), cujas ideias muito ampliadas foram elaboradas em Political Development (1973) e em Introdução ao Desenvolvimento Social (1978). Neles estão presentes a vivência da História brasileira, a política comparada e o uso sincrônico e diacrônico da experiência de outros países na análise das perspectivas brasileiras, as contribuições da ciência política norte-americana e o diálogo com os pensadores "clássicos" e "modernos". Disso resulta, no trato da dinâmica das mudanças, uma concepção funcional-dialética das sociedades, das variáveis da participação e de institucionalização dos seus sistemas políticos, do papel das lideranças e das congruências e incongruências dos fluxos entre o social, o econômico, o cultural e o político. Desse modo Helio alargou o universo do saber da ciência política, dando a base de sustentação teórica das prescrições do seu "nacionalismo de fins", comprometido em assegurar as condições de viabilidade de um caminho próprio para o Brasil no mundo, numa visão humanista destituída de zelotismos fundamentalistas.

A presença brasileira no mundo tem como suporte uma escala continental conjugada com o potencial da sua economia e de seus recursos humanos e materiais. Assim, Helio, levando em conta a aptidão interna para o desenvolvimento e partindo da ciência política, ao tratar das perspectivas da nossa diplomacia se tornou o patrono inaugural do pensamento brasileiro sobre relações internacionais. Um marco é a sua discussão da política externa brasileira em O Nacionalismo na Atualidade Brasileira (1958), no qual, por meio de um confronto analítico de posturas no período da guerra fria, pioneiramente argumenta os méritos de um não alinhamento automático com os EUA.

Dessa tomada de posição deflui a elaboração de um tema básico de Helio, que subsequentemente permeia o conjunto de estudos do livro Novo Cenário Internacional (1986) e trabalhos posteriores. Esse tema é, em síntese, o da arquitetura das condições de acesso do Brasil à autonomia, como tal entendido o de tornar viável, em distintos momentos e conjunturas, uma margem significativa de autodeterminação na condução dos assuntos internos, conjugada com uma apreciável capacidade de atuação internacional independente. Um dos seus conceitos-chave é o da dinâmica das condições de permissibilidade vigentes num sistema internacional estratificado em que prevalecem hegemonias. Daí os inúmeros estudos de Helio sobre o sistema internacional e suas transformações, do escopo de atuação dos EUA durante e após a guerra fria, da relevância da integração latino-americana e de uma aliança estratégica com a Argentina e do significado da capacitação científico-tecnológica.

Concluo realçando, com afetuosa admiração, a postura cidadã de Helio, caracterizada pela vontade e pela inteligência aplicadas ao bem da res publica. Essa postura confere a marca da grandeza a uma obra e uma vida voltadas, numa larga visada que transita pela sociologia histórica e pela antropologia filosófica, para a incessante procura, sem interesses subalternos e personalismos, dos meios de bem servir ao Brasil e à sua sociedade.


* Celso Lafer é professor emérito do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo, membro da Academia Brasileira de Letras e da Academia Brasileira de Ciências.

26.4.13

Lêdo Ivo: "Esperando a alvorada"







Esperando a alvorada

O pensamento é nada e o canto é tudo.
E toda vez que penso fico mudo
sem poder dizer nada ou dizer tudo
que se oculta no nada em que me penso
quando penso e sou nada, sendo tudo.





IVO, Lêdo. Aurora. Versão bilingue, traduzida para o espanhol por Martín Lopez-Vega. Madrid: Editorial Pre-Textos, 2013.

22.4.13

Wisława Szymborska: "Alguns gostam de poesia": trad. Regina Przybycien




Alguns gostam de poesia

Alguns -
ou seja nem todos.
Nem mesmo a maioria de todos, mas a minoria.
Sem contar a escola onde é obrigatório
e os próprios poetas
seriam talvez uns dois em mil.

Gostam -
mas também se gosta de canja de galinha,
gosta-se de galanteios e da cor azul,
gosta-se de um xale velho,
gosta-se de fazer o que se tem vontade
gosta-se de afagar um cão.

De poesia -
mas o que é isso, poesia.
Muita resposta vaga
já foi dada a essa pergunta.
Pois eu não sei e não sei e me agarro a isso
como a uma tábua de salvação.




SZYMBORSKA,Wisława. Poemas. Trad. de Regina Prazybycien. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

20.4.13

Heinrich Heine: "Die blauen frühlingsaugen" / "Esses olhos-primavera": trad. André Vallias







Esses olhos-primavera,
Me fitando azuis na relva
São amáveis violetas
Que escolhi para um buquê.

Vou colhendo enquanto penso:
O que vem ao pensamento
E no coração me dói,
Cantam alto os rouxinóis.

O que eu penso eles cantam
Estridentes – num instante
Minha sina mais secreta
Espalhou-se na floresta.




Die blauen Frühlingsaugen
Schau'n aus dem Gras hervor;
Das sind die lieben Veilchen,
Die ich zum Strauß erkor.

Ich pflücke sie und denke,
Und die Gedanken all,
Die mir im Herzen seufzen,
Singe laut die Nachtigall.

Ja, was ich denke, singt sie
Lautschmetternd, daß es schallt;
Mein zärtliches Geheimnis
Weiß schon der ganze Wald.



HEINE, Heinrich. "Die blauen Frühlingsaugen" / "Esses olhos-primavera". Trad. André Vallias. In: VALLIAS, André. Heine hein? Poeta dos contrários. São Paulo: Perspectiva, 2011.



18.4.13

W.H. Auden: "Lay your sleeping head, my love" / "Repousa, meu amor, a tua cabeça adormecida": trad. Margarida Vale de Gato







Lay your sleeping head, my love

Lay your sleeping head, my love,
Human on my faithless arm;
Time and fevers burn away
Individual beauty from
Thoughtful children, and the grave
Proves the child ephermeral:
But in my arms till break of day
Let the living creature lie,
Mortal, guilty, but to me
The entirely beautiful.

Soul and body have no bounds:
To lovers as they lie upon
Her tolerant enchanted slope
In their ordinary swoon,
Grave the vision Venus sends
Of supernatural sympathy,
Universal love and hope;
While an abstract insight wakes
Among the glaciers and the rocks
The hermit’s sensual ecstasy.

Certainty, fidelity
On the stroke of midnight pass
Like vibrations of a bell,
And fashionable madmen raise
Their pedantic boring cry:
Every farthing of the cost,
All the dreadful cards foretell,
Shall be paid, but from this night
Not a whisper, not a thought,
Not a kiss nor look be lost.

Beauty, midnight, vision dies:
Let the winds of dawn that blow
Softly round your dreaming head
Such a day of sweetness show
Eye and knocking heart may bless.
Find the mortal world enough;
Noons of dryness see you fed
By the involuntary powers,
Nights of insult let you pass
Watched by every human love.




Repousa, meu amor, a tua cabeça adormecida

Repousa, meu amor, a tua cabeça adormecida,
Humana, sobre o meu braço descrente;
O tempo e as febres consomem
A singular beleza das
Crianças pensativas, e a campa
Prova que é frágil a criança;
Mas nos meus braços, até amanhecer
Deixa jazer a criatura viva,
Mortal, pecadora, mas para mim,
De uma beleza sem fim.

Não têm limites a alma e o corpo:
Aos amantes que se deitam
Sobre a sua vertente encantada
Num habitual delíquio,
Oferece Vénus uma grande visão
De compaixão sobrenatural,
De esperança e de amor universal;
Enquanto uma abstracta percepção
Desperta, entre rochas e glaciares,
O êxtase sensual do ermitão.

A certeza, a fidelidade,
Ao toque da meia-noite se vão
Como vibrações de um sino,
E os loucos em voga erguem
O seu grito maçador e pedante;
E tudo até ao último tostão,
Predizem-no as cartas temidas,
Será pago, mas desta noite,
Não se perca um só instante,
Um único beijo, um pensar,
Um suspiro anelante.

A beleza, a meia-noite, a visão fenece.
Que sopre suave o vento errante
Da aurora sobre a tua cabeça adormecida,
Desvelando um dia de tanta doçura
Que agracie o olhar e o coração pulsante,
Bastando-lhes o mundo mortal;
E que te saciem, na árida secura,
Os poderes involuntários,
E possas passar, nas noites de injúria,
À guarda de todo o humano amor.




AUDEN, W.H. Outro tempo. Trad. Margarida Vale de Gato. Lisboa: Relógio d'Água, 2003.

13.4.13

Arthur Rimbaud: "L'Éternité" / "A Eternidade": trad. Ivo Barroso






A Eternidade

Achada, é verdade?
Quem? A Eternidade.
É o mar que se evade
Com o sol à tarde.

Alma sentinela
Murmura teu rogo
De noite tão nula
E um dia de fogo.

A humanos sufrágios,
E impulsos comuns
Que então te avantajes
E voes segundo...

Pois que apenas delas,
Brasas de cetim,
O Dever se exala
Sem dizer-se: enfim.

Nada de esperança,
E nenhum oriétur.
Ciência em paciência,
Só o suplício é certo.

Achada, é verdade?
Quem? A Eternidade.
É o mar que se evade
Com o sol à tarde.




L'Éternité

Elle est retrouvée.
Quoi ? - L'Eternité.
C'est la mer allée
Avec le soleil.

Ame sentinelle,
Murmurons l'aveu
De la nuit si nulle
Et du jour en feu.

Des humains suffrages,
Des communs élans
Là tu te dégages
Et voles selon.

Puisque de vous seules,
Braises de satin,
Le Devoir s'exhale
Sans qu'on dise : enfin.

Là pas d'espérance,
Nul orietur.
Science avec patience,
Le supplice est sûr.

Elle est retrouvée.
Quoi ? - L'Eternité.
C'est la mer allée
Avec le soleil.




RIMBAUD, Arthur. Poesia completa. Edição bilingue. Trad. Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994.



12.4.13

Entrevista a Aetano Lima






Uma entrevista minha ao nosso querido Aetano Lima teve a honra de ser o primeiro post do belo blog "A boceta de Pandora", que ele acaba de inaugurar. Deem uma olhada. O endereço é: http://aetano.blogspot.com.br.






9.4.13

Manuel Maria Barbosa du Bocage: "Incultas produções da mocidade"






Incultas produções da mocidade
Exponho a vossos olhos, ó leitores:
Vede-as com mágoa, vede-as com piedade,
Que elas buscam piedade, e não louvores.

Ponderai da Fortuna a variedade
Nos meus suspiros, lágrimas e amores;
Notai dos males seus a imensidade,
A curta duração de seus favores;

E se entre versos mil de sentimento
Encontrardes alguns cuja aparência
Indique festival contentamento,

Crede, ó mortais, que foram com violência
Escritos pela mão do Fingimento,
Cantados pela voz da Dependência.




BOCAGE, Manuel Maria Barbosa du. Sonetos de Bocage. Org. de Fernando Mendes de Almeida. São Paulo: Saraiva, 1956.



5.4.13

Jaime Gil de Biedma: "La calle Pandrossou" / " A rua Pandrossou: trad. de José Bento






La calle Pandrossou


Bienamadas imágenes de Atenas

En el barrio de Plaka,
junto a Monastiraki,
una calle vulgar con muchas tiendas.

Si alguno que me quiere
alguna vez va a Grecia
y pasa por allí, sobre todo en verano,
que me encomiende a ella.

Era un lunes de agosto
después de un año atroz, recién llegado.
Me acuerdo que de pronto amé la vida,
porque la calle olía
a cocina y a cuero de zapatos.





A rua Pandrossou

Bem-amadas imagens de Atenas


No bairro de Plaka
perto de Monastiraki,
uma rua vulgar com muitas lojas.

Se alguém que de mim gosta
um dia for à Grécia
e passar por ali, sobretudo no verão,
dê-lhe saudades minhas.

Era uma segunda-feira de agosto
depois de um ano atroz, recém chegado.
Lembro-me que de repente amei a vida,
porque a rua cheirava
a cozinha e a couro de sapatos.




BIEDMA, Jaime Gil de. Antologia poética. selecção e tradução de José Bento. Lisboa: Cotovia, 2003.

3.4.13

Vladimir Safatle: "O primeiro embate"

O seguinte -- excelente -- artigo de Vladimir Safatle foi publicado no dia 2 de abril, na Folha de São Paulo:


Vladimir Safatle




O primeiro embate

Os embates em torno da presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara talvez sejam o primeiro capítulo de um novo eixo na política brasileira.

A maneira aguerrida com que o deputado Marco Feliciano e seus correligionários ocupam espaço em uma comissão criada exatamente para nos defender de pessoas como eles mostra a importância que dão para a possibilidade de bloquear os debates a respeito da modernização dos costumes na sociedade brasileira. Pois, tal como seus congêneres norte-americanos, apoiados pelo mesmo círculo de igrejas pentecostais, eles apostam na transformação dos conflitos sobre costumes na pauta política central. Uma aposta assumida como missão.

Durante os últimos anos, o conservadorismo nacional organizou-se politicamente sob a égide do consórcio PSDB-DEM. Havia, no entanto, um problema de base. O eleitor tucano orgânico é alguém conservador na economia, conservador na política, mas que gosta de se ver como liberal nos costumes. Quando o consórcio tentou absorver a pauta do conservadorismo dos costumes (por meio das campanhas de José Serra), a quantidade de curtos-circuitos foi tão grande que o projeto foi abortado. Mesmo lideranças como FHC se mostraram desconfortáveis nesse cenário.

Porém ficava claro, desde então, que havia espaço para uma agremiação triplamente conservadora na política brasileira. Ela teria como alicerce os setores mais reacionários das igrejas, com suas bases populares, podendo se aliar aos interesses do agronegócio, contrariados pelo discurso ecológico das "elites liberais". Tal agremiação irá se formar, cedo ou tarde.

Nesse sentido, o conflito em torno dos direitos dos homossexuais deixou, há muito, de ser algo de interesse restrito. Ele se tornou a ponta de lança de uma profunda discussão a respeito do modelo de sociedade que queremos.

A luta dos homossexuais por respeito e reconhecimento institucional pleno é, atualmente, o setor mais avançado da defesa por uma sociedade radicalmente igualitária e livre da colonização teológica de suas estruturas sociais. Por isso, ela tem a capacidade de recolocar em cena as clivagens que sempre foram o motor dos embates políticos.

A história tem um peculiar jogo por meio do qual ela encarna os processos de transformação global em lutas que, aparentemente, visam apenas a defesa de interesses particulares.

Ao exigir respeito e reconhecimento, os homossexuais fazem mais do que defender seus interesses. Eles confrontam a sociedade com seu núcleo duro de desigualdade e exclusão. Por isso, sua luta pode ter um forte poder indutor de transformações globais.