30.3.15

O seguinte -- excelente -- artigo da escritora Rosiska Darcy de Oliveira foi publicado no jornal O Globo no sábado, 28 do corrente:


A liberdade comanda

‘Babilônia’ tira tarja preta de um tipo de relação humana entre muitas outras possíveis. Gays estão em todos os estratos

Foi no Teatro Jovem, uma sala minúscula no canto da Praia de Botafogo, que vi Nathalia Timberg pela primeira vez. Nathalia foi a Antígona dos meus 20 anos. Lembro-me dela, jovem e bela, as mãos espalmadas para o alto, dizendo algo como “com as minhas unhas quebradas e as mãos sujas de terra, eu sou rainha e você, Creonte, o rei, é um escravo que só pode me condenar à morte”. A jovem princesa tebana, selvagem filha de Édipo, desafiava o poder, era a imagem mesma da rebeldia. Quando escrevi meu primeiro livro sobre a rebelião das mulheres, pensei em dedicá-lo a Nathalia que, sem saber, com seu talento de intérprete, plantara em mim essa imagem da ousadia e da coragem.

Fernanda Montenegro foi a Simone de Beauvoir da minha idade madura. Noites seguidas assisti à peça “Viver sem tempos mortos”, a história de Simone na voz de Fernanda. Terminada a encenação, eu fazia um comentário sobre a autora e abria-se um debate com a plateia. Durante meses ouvi Fernanda repetir com a mágica que têm as entonações precisas dessa formidável atriz: “A liberdade comanda, ela não obedece”. A cada vez eu concordava com ela.

Nathalia e Fernanda são mulheres luminosas, trajetórias impecáveis de talento, dignidade e honestidade. Elas são o melhor do Brasil, patrimônio da nossa arte, ainda mais preciosas e exemplares neste momento em que a política chafurda o país na mentira e na intolerância. Hoje, aos 85 anos, elas estão em cena na novela “Babilônia” vivendo duas idosas que mantêm uma relação amorosa estável há mais de 40 anos.

Os personagens de Estela e Teresa estão provocando a ira de pastores de fancaria e outros moralistas de todo gênero, que esbravejam em nome da defesa da moral e da família. Houve notas de protesto contra o erotismo das senhoras. O tom nas redes sociais deslizou para a brutalidade vulgar. Nem a pessoa das atrizes foi poupada.

O que chocou tanto essas pessoas? Ignoram, vivendo no Brasil e não no Estado Islâmico, no ano de 2015, que os direitos de casais homossexuais são reconhecidos pela lei brasileira, assim como na grande maioria dos países civilizados? São numerosos e, vivendo abertamente suas vidas amorosas e familiares, vão saindo progressivamente de um lugar de negação e vergonha, de não eu, em que a hipocrisia da maioria os colocava, para afirmar um outro eu. Denunciam assim, a intolerância à alteridade, que nos leva a ver o nada no que não nos reflete e descreve o diferente como ausente.

Pessoas que eram definidas de maneira negativa e patológica — e, humilhadas, se autodefiniam assim — passaram a se afirmar, a encarnar um código próprio, expondo e legitimando uma possibilidade existencial outra. Iluminaram as zonas de sombra e proibição onde, desde sempre, se escondia o lado “inconfessável” da sociedade. O que se vê, agora, não é nada extraordinário, é a mesma realidade de carinho, apoio mútuo e também desavenças, encontros e desencontros em que todos os casais se reconhecem. É essa banalidade dos personagens de Estela e Teresa que desmonta os interditos e maldições que pesam sobre os casais do mesmo sexo.

A dramaturgia de “Babilônia” tira a tarja preta de um tipo de relação humana entre muitas outras possíveis. Os gays estão em todos os estratos sociais, etnias e religiões. Por que ainda assustam e despertam tanta agressividade? Fica claro que a patologia não está neles nem em suas vidas. Está em quem derrama o veneno do ódio sobre o amor alheio. O Papa declarou: “Quem sou eu para julgar?”

Além do preconceito contra homossexuais, nos ataques às personagens Estela e Teresa se manifesta outro preconceito, contra a sexualidade dos idosos sobre a qual ainda pesa um silencio constrangido ou a acusação de despudor. Mais que a decadência das formas é o olhar dos outros, condenatório, que proíbe aos corpos envelhecidos, sujeitos à impiedosa escultura do tempo, o alumbramento diante da vida. Felizmente, o ardor resiste, já que é feito de matéria não perecível. Quem não se reconhece nas fotos, se reconhece nas emoções que persistem e que são vividas na alegria. Queiram ou não, os que digerem mal a liberdade.


Quem já foi Antígona, quem já foi Simone de Beauvoir, na certa não teme representar nenhum papel. Não são as novelas que mudam a sociedade, é a sociedade que já mudou que dá veracidade às novelas. A sociedade brasileira muda para melhor quando, em todos os planos, quer a verdade. De nada adianta políticos canastrões, campeões da hipocrisia, desarquivarem projetos de lei anacrônicos. A liberdade comanda, ela não obedece.


Rosiska Darcy de Oliveira
rosiska.darcy@uol.com.br

28.3.15

Platão: Epigrama V.79 / trad.: João Paulo Paes




Clique na imagem, para ampliar:





















PLATÃO. Epigrama V.79. In: PAES, João Paulo (org.). Poemas da Antologia Grega ou Palatina. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

26.3.15

Jorge Luis Borges: "A John Keats": trad. de Augusto de Campos




A John Keats (1795-1821)

Desde o princípio até a jovem morte
A terrível beleza te espreitava
Como a outros tantos a propícia sorte
Ou a má. Nas auroras te esperava

De Londres, entre as páginas casuais
De um dicionário de mitologia,
Nas mais humildes dádivas do dia,
Em um rosto, uma voz, ou nos mortais

Lábios de Fanny Brawne. Ó sucessivo
E arrebatado Keats, que o tempo cega,
Esse alto rouxinol, essa urna grega

São tua eternidade, ó fugitivo.
Foste o fogo. Na pânica memória
Já não és mais a cinza. És a glória.



A John Keats (1795-1821)

Desde el principio hasta la joven muerte
La terrible belleza te acechaba
Como a los otros la propicia suerte
O la adversa. En las albas te esperaba

De Londres, en las páginas casuales
De un diccionario de mitología,
En las comunes dádivas del día,
En un rostro, una voz, y en los mortales

Labios de Fanny Brawne. Oh sucesivo
Y arrebatado Keats, que el tiempo ciega,
El alto ruiseñor y la urna griega

serán tu eternidad, oh fugitivo.
Fuiste el fuego. En la pánica memoria
No eres hoy la ceniza. Eres la gloria.



BORGES, Jorge Luis. "A John Keats". In:_____. Quase Borges. 20 transpoemas e uma entrevista. Tradução de Augusto de Campos. São Paulo: Terracota, 2013.

23.3.15

Rodrigo Garcia Lopes: "Império dos segundos"





Império dos segundos

Se eu fosse parar pra saber
o sabor deste instante
não iria jamais perceber
do que é feito o durante,

a carne de cada segundo,
minuto de cada poente
de que é feito este mundo,
sangue, esperma, poeira,

não ia jamais me lembrar
da trama da tarde, museu
onde moram as velhas horas,
nem o duro rosto deste outro

outono, matéria, mistério,
nem a memória, esse mármore
em fluxo, rugido em estéreo
de uma incessante cachoeira.



LOPES, Rodrigo Garcia. "Império dos segundos". In:_____. Experiências extraordinárias. Londrina: Kan, 2014.

21.3.15

Safo: Fr.31: trad. Antonio Cicero




Clique na imagem, para ampliá-la:
























SAFO. "Fr.31". CAMPBELL, David A. (org). Greek lyric I: Sappho and Alcaeus. Cambridge, Mass.: Harvard U. Press, 1982.





19.3.15

Fernando Pinto do Amaral: "Espectro"




Espectro

Quem te disser agora como cai
a tarde apenas fala
da tua própria vida      Quem agora
te disser como desce devagar
o inverno mais secreto
ao teu corpo não mente — apenas fala
do tempo que foi teu desde o princípio
ao fim      Sempre soubeste
que nada vale nada
mas queres continuar      Todos os dias
entregam ao futuro a sua sombra
e no entanto acendem ao crepúsculo
o seu mais claro enigma, esse resto
de sol em movimento
quando por um instante vês brilhar
ainda a sua luz, o seu incerto
espectro



AMARAL, Fernando Pinto do. "Espectro". In:_____. Paliativos. Lisboa: Língua Morta, 2012.

16.3.15

Armando Freitas Filho: "Músculo, mas do coração"




                                            para Carlos

Músculo, mas do coração.
A felicidade é indefensável
e esta casa está tão delicada
até nos pregos
construída e definitiva.
Pratos, copos, toda a louça
e o que é de vidro, vive
plenamente -- brilha
sem medo do esplendor.




FREITAS FILHO, Armando. "Músculo, mas do coração". In:_____. "Números anônimos". In:_____. Máquina de escrever. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003.

12.3.15

P.B. Shelley: "Ozymandias" / "Ozymândias": trad. André Vallias




OZYMÂNDIAS

Disse o viajante de uma antiga terra:
  “Duas pernas de pedra, no deserto,
Despontam gigantescas, e bem perto
  Há um rosto destroçado que descerra
Os lábios num sorriso de comando
  Que atesta: o escultor leu com mestria
Paixões que na matéria inerte e fria
  A mão que as entalhou vão perdurando.
‘Meu nome é Ozymândias, rei dos reis:
  Desesperai perante as minhas obras!’
Alerta uma inscrição no pedestal.
  Mas são ruínas tudo o que ali sobra,
E um mar de areia, em árida nudez,
  Circunda a decadência colossal”.



Tradução de André Vallias




OZYMANDIAS

I met a traveller from an antique land
  Who said: “Two vast and trunkless legs of stone
Stand in the desert. Near them on the sand,
  Half sunk, a shatter'd visage lies, whose frown
And wrinkled lip and sneer of cold command
  Tell that its sculptor well those passions read
Which yet survive, stamp'd on these lifeless things,
  The hand that mock'd them and the heart that fed.
And on the pedestal these words appear:
  ‘My name is Ozymandias, king of kings:
Look on my works, ye mighty, and despair!’
  Nothing beside remains: round the decay
Of that colossal wreck, boundless and bare,
  The lone and level sands stretch far away”.




SHELLEY, P.B. "Ozymandias". In:_____. Poetical works. Ed. by Thomas Hutchinson. Oxford: Oxford U. Press, 1970. 

11.3.15

José Castello: "Os sapatos de Leminski"



Gostei muito do artigo do José Castello intitulado "Os sapatos de Leminski". Ele se encontra aqui: http://oglobo.globo.com/blogs/literatura/posts/2015/03/11/os-sapatos-de-leminski-562309.asp.  

10.3.15

Giuseppe Ungaretti: "Peso" / "Peso": trad. Geraldo Holanda Cavalcanti




Peso

                Mariano, 29 de junho de 1916


Aquele camponês
se fia na medalha
de Santo Antonio
e segue tranquilo

Mas bem só e bem nua
sem qualquer miragem
carrego minha alma




Peso

                 Mariano il 29 giugno 1916

Quel contadino
si affida alla medaglia
di Sant'Antoni
e va leggero

Ma ben sola e ben nuda
senza miraggio
porto la mia anima



UNGARETTI, Giuseppe. "Peso". In:_____. L'Allegria / A alegria. Trad. Geraldo Holanda Cavalcanti. Rio de Janeiro: Record, 2003.


                 
    

8.3.15

Adriana Calcanhotto e Antonio Cicero em "Afinando a Língua", com Tony Bellotto, no Canal Futura



Ao final do ano passado, participei, junto com Adriana Calcanhotto, do programa "Afinando a Língua", com Tony Bellotto, no Canal Futura. Eis como ficou:


7.3.15

Mário Annuza: "DESORDEM"




DESORDEM

ai, quem me dera ser milionário 
morar na avenida vieira souto 
ter mais de vinte helicópteros 
não me preocupar com nada, 
e viver apenas de renda.

ai, quem me dera ser bacharel 
ser catedrático em harvard 
falar pelo menos cinco línguas 
ser casado com a cindy crawford 
e morrer coberto de glórias.

ai, quem me dera ser ary barroso 
ser o criador da aquarela do brasil 
ficar conhecido como compositor 
mostrar as curvas de uma mulata 
e ser considerado um gênio.

ai, quem me dera ser vieira souto 
morar na avenida cinco línguas 
ter mais de vinte glórias 
não me preocupar com o compositor, 
e viver apenas de bacharel.

ai, quem me dera ser helicópteros 
ser catedrático em nada 
falar pelo menos de renda 
ser casado com a aquarela do brasil 
e morrer coberto de ary barroso.

ai, quem me dera ser avenida 
ser o criador da cindy crawford 
ficar conhecido como harvard 
mostrar as curvas de um milionário 
e ser considerado uma mulata. 




ANNUZA, Mário. "Desordem". In:_____. acústica. Rio de Janeiro: encantarte, 2014.

5.3.15

Odylo Costa Filho: "A ponte"




A ponte

Para quem sabe andar de olhos abertos
existe um mundo em cada grão de areia.
Dentro dele há segredos encobertos
onde a matéria se desencadeia.

E ao mesmo tempo o mar é meu consolo.
O homem criou o barco, e de paredes
fez a casa, tijolo após tijolo,
para o abandono sensual das redes.

O infinito da linha do horizonte
se dispersa e concentra no infinito
do universo das coisas pequeninas.

Não tenhas medo, minha amiga. A ponte,
que liga a vida e a morte como um grito
de amor, cobriu-se agora de boninas...




COSTA FILHO, Odylo. "A ponte". In:_____. "Os mirantes do ilhéu". In:_____. Poesia completa. Org. por Virgílio Costa. Rio de Janeiro: Aeroplano e Fundação Biblioteca Nacional, 2010.

3.3.15

Abel Silva: "O mercado da fé"




O mercado da fé

Então
é isso
o que quer
a animada manada
dos sem neurônios:

um único deus
e zilhões
de demônios?



SILVA, Abel. "O mercado da fé". In:_____. O gosto dos dias. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2014.

1.3.15

José Almino: "Outro dia"




Outro dia

A luz era variável e branda,
sem tirar nem por.
E o rio corria lento atrás das casas,
só faltava falar.

Sem tirar nem por.

Cedinho, as costureiras,
gente tão mansa e afável,
passavam, 
entristeciam a alva em surpresa.

E a poesia era desnecessária.





ALMINO, José: "Outro dia". Inédito.